Quem ignora o quê e quem omite o quê na Cultura: Uma resposta e 15 perguntas para Morgana Eneile
É muito positivo que a Secretária Nacional de Cultura do PT, Morgana Eneile, tenha tomado o tempo de responder ao meu texto sobre a esquerda e a cultura, publicado aqui.
Por Idelber Avelar [12.04.2011 10h20]
É muito positivo que a Secretária Nacional de Cultura do PT, Morgana Eneile, tenha tomado o tempo de responder ao meu texto sobre a esquerda e a cultura, publicado aqui na revista Fórum. Considerando o marginalíssimo papel cumprido pela Secretária nos amplos debates acerca dos rumos do MinC que têm tido lugar nas mídias eletrônica e impressa nos últimos três meses e meio, ter elicitado um pronunciamento dela já é motivo suficiente de comemoração, ainda que Eneile tenha optado por dialogar com algo bem diferente do que escrevi, como atestam as aspas mentirosamente colocadas em palavras que eu não usei.
Passemos então a fazer com o texto de Eneile o que ela não fez com o meu, ou seja, citá-lo corretamente, aspeando somente o que a Secretária efetivamente escreveu. Esta não será, no entanto, uma demolição do texto de Eneile. Acredito que é produtivo colocar tarefas mais difíceis do que aquelas que se apresentam a nós de forma mais óbvia. A refutação dos trechos mentirosamente aspeados só servirá para introduzir o que realmente interessa, a segunda parte da réplica, na qual ofereço 15 perguntas que, sendo verdadeiro o que diz a Secretária, ela não terá nenhuma dificuldade em responder.
Segundo a autora, eu desconheço ou omito “o processo histórico de construção política e programática do PT” com o “objetivo de comprovar seu equivocado raciocínio, segundo o qual os avanços na Cultura, durante o governo Lula, teriam ocorrido 'apesar' do PT.”
Já fui acusado de muita coisa na internet, mas de desconhecer o processo de construção do PT, confesso que foi a primeira vez. Para qualquer um que tenha acompanhado as campanhas petistas na blogosfera brasileira nos últimos seis anos, a afirmativa causará estupefação. Mas não é o autor, claro, o que interessa aqui, e sim o raciocínio. Segundo Eneile, eu teria dito que os avanços na Cultura durante o governo Lula teriam ocorrido “apesar” do PT. Usando o ótimo motor de busca da revista Fórum, procurei a palavra “apesar”, que Eneile coloca entre aspas. Não há ocorrências da palavra do meu texto. Por que ela está entre aspas, Eneile, se eu jamais a usei? De onde você deduz que esse é o meu raciocínio, se no texto que efetivamente escrevi está lá, com todas as letras: “para ele [o MinC Gil / Juca] contribuíram muitos petistas, especialmente no segundo e terceiro escalões do ministério”? Quem está omitindo o quê aqui?
Mais adiante, a autora de novo aspeia o que eu não disse, ao afirmar “é interessante notar que o texto de Avelar aponta para a suposta 'ausência' do PT” … Ora, como pode comprovar o leitor, na única ocorrência da palavra “ausência” no meu texto, o seu antecedente óbvio é “a existência de um projeto coerente para a cultura”. Só por analfabetismo funcional ou má fé é possível confundir “ausência de um projeto coerente para a cultura no PT” com “ausência do PT”, mas é exatamente essa operação que realiza Eneile. Meu texto não nega que o PT realizou excepcionais gestões da cultura em suas administrações municipais. O texto explicitamente cita as experiências de São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte, entre inúmeras outras que poderiam ser arroladas. Meu texto diz, sim, que um projeto coerente para a cultura que unifique o PT em nível nacional ainda não existe, está por se construir, e eu espero demonstrar, ao longo dessa exposição, que é de interesse de todos os petistas reconhecer isso.
Na sequência, a autora se refere a meu texto pela terceira vez, agora com uma paráfrase e, incrivelmente, pela terceira vez, de forma mentirosa. Diz o texto de Eneile: “Um dos maiores equívocos conceituais do texto de Avelar é associar o PT ao modelo ‘bom negócio’ da Lei Rouanet”.
Eneile aqui confunde uma relação de coexistência temporal com uma relação de conexão causal. Meu texto jamais “associa” o PT à Lei Rouanet, no sentido de atribuir ao partido responsabilidade por ela. Sim, Morgana, eu sei que o PT não governava o Brasil em 1991. O texto simplesmente diz: “no período da Lei Rouanet, reforçam-se os laços entre a chamada 'classe artística' e o PT”, o que é fato histórico cabalmente comprovável, apesar de que muitos artistas já haviam se aproximado do PT durante a década de 80, especialmente na campanha Lula-Bisol de 1989. Essa aproximação, evidentemente, só engrandece o PT. Mas ela também contribui para o complexo quadro atual, no qual uma multiplicidade de sujeitos petistas têm relações bastante diferentes com o processo vivido pelo MinC-- diferenças que o texto de Eneile, ao criar um “nós” petista convenientemente unificado, escamoteia.
Apesar das paráfrases desonestas e das aspas mentirosamente colocadas, existe, sim, no texto de Eneile um substrato real que vale a pena discutir-- e é a esse tema, mais importante, que passo agora. Como sabem milhares de petistas esparramados pelo Brasil nos pontos de cultura, nas secretarias municipais, na militância da cultura digital e em vários outros fóruns, há uma enorme insatisfação com os rumos tomados pelo MinC. Se há realmente um projeto para a cultura nacional que unifique o PT, não seria difícil, suponho, para a Secretária de Cultura do partido responder algumas dessas 15 perguntas.
1.Um dos primeiros atos da nova Ministra foi a retirada do selo Creative Commons da página web do Ministério, eliminando um modelo de licenciamento governamental flexível, no qual o Brasil foi pioneiro. Inúmeros petistas que trabalharam na gestão Gil-Juca—como corretamente reconhece o texto de Eneile, ao se referir ao papel do PT no Ministério de Lula--se juntaram à indignação dos ativistas da cultura digital. Qual é a posição da Secretaria de Cultura do PT sobre esse ato da Ministra?
2.A Ministra Ana de Hollanda recentemente afirmou que a fiscalização estatal sobre o ECAD seria uma intervenção indevida do estado, e em outro pronunciamento chegou a comparar dita fiscalização com a ditadura militar. No entanto, a Lei 12.343/2010, do dia 2 de dezembro, elaborada pelo Ministério Gil-Juca e sancionada pelo Presidente Lula, prevê: 1.9.1 Criar instituição especificamente voltada à promoção e regulação de direitos autorais e suas atividades de arrecadação e distribuição. A Secretaria de Cultura do PT concorda com a Ministra que essa instituição seria uma ingerência indevida e ditatorial do estado ou se dispõe a lutar pela implementação da lei à qual tantos petistas contribuíram no MinC Gil-Juca, e que foi sancionada pelo Presidente Lula?
3.Em recente audiência no Senado Federal, a Ministra Ana de Hollanda afirmou que o Creative Commons é “uma propagandinha de um serviço que uma entidade promove”. No entanto, inúmeros ativistas digitais com históricas relações com o PT, como Marcelo Branco, Sérgio Amadeu e muitos outros, apontaram que o Creative Commons não é propaganda, posto que não vende nada, sendo simplesmente uma forma de licenciamento flexível que permite ao autor decidir quais direitos ele quer manter e quais ele quer compartilhar. A Secretaria de Cultura do PT mantém a visão da Ministra, de que o CC é uma “propagadinha”, ou concorda com os inúmeros petistas que atuam na cultura digital?
4.Na mesma audiência no Senado, a Ministra afirmou que pediu de volta à Casa Civil o projeto de revisão da lei de Direitos Autorais, exaustivamente discutido ao longo do governo Lula, porque “nós ainda não tínhamos a pessoa para cuidar da área dos direitos intelectuais”. O que a Ministra omitiu no depoimento é que ela demitiu o responsável pela Diretoria de Direitos Intelectuais, Marcos Souza, respeitadíssimo em Brasília com um dos maiores especialistas brasileiros em direitos autorais, nomeando para seu posto Marcia Regina Barbosa, de históricas afinidades com o ECAD. A Secretaria de Cultura do PT tem posição sobre a demissão de um profissional chave na revisão dos direitos autorais durante o governo Lula?
5.Em recente declaração, a Ministra afirmou que “ninguém conhece muito bem” o projeto de revisão dos direitos autorais enviados pelo MinC Gil-Juca à Casa Civil. No entanto, o Ministério da Cultura de Lula realizou 6 anos de debates, dezenas de reuniões em todo o país, seminários nacionais e internacionais, e promoveu 75 dias de consulta pública na internet, através da qual 7500 contribuições foram feitas. A Secretaria de Cultura do PT concorda com Ana de Hollanda, que ninguém “conhece muito bem” a revisão proposta pelo governo Lula, ou se junta aos inúmeros petistas que demonstraram estupefação ante a declaração da Ministra, feita depois de ela ter reconhecido que não leu o projeto de revisão da lei e de ter declarado que “nem é o caso” de ela o ler?
6.O ator Antônio Grassi, reconhecidamente um dos nomes fortes do atual Ministério, presidente da Funarte e de históricas relações com a Ministra, recentemente declarou que “houve um momento em que se fomentou a importância de fazer inclusão social por meio da arte, e a excelência artística ficou em segundo plano”. Considerando—e nisso acredito que eu e Morgana, como petistas, podemos concordar—que o governo FHC jamais fez inclusão social por meio da arte, e que o projeto de inclusão social via arte foi a marca do governo do PT, a declaração de Grassi só pode se referir ao projeto de cultura do governo Lula. A Secretaria de Cultura do PT concorda com Grassi que a inclusão social por meio da arte deixa “a excelência artística em segundo plano”? A Secretaria de Cultura trabalha com os conceitos de inclusão social pela cultura e de excelência artística como esferas dicotômicas, ou discorda de Antônio Grassi? A Secretaria de Cultura concorda que o MinC de Lula deixou “a excelência artística em segundo plano”?
7.Um dos jornalistas que mais conhecem as entranhas do PT, Renato Rovai, deu a notícia de que “na bancada de deputados petistas, há uma insatisfação quase generalizada com as ações do ministério”. A Secretaria de Cultura do PT confirma, desmente ou ignora a notícia dada por Rovai, de que o Ministério de Ana de Hollanda produz insatisfação “quase generalizada” na bancada petista? Se a notícia dada por Rovai é correta, a Secretaria de Cultura do PT se coloca de qual lado, da insatisfação da bancada petista ou do Ministério de Ana de Hollanda?
8.A lista de desastres do atual Ministério da Cultura é tão grande que, no tempo que eu gasto para escrever um texto de resposta à Secretária de Cultura do PT, mais um quadro importante do MinC se demite. Neste domingo, o Dr. José Castilho Marques Neto entregou seu cargo no Plano Nacional do Livro e da Leitura (marco importante no MinC Lula), fazendo uma denúncia gravíssima: a de que tentou desde o começo do governo ser recebido pela Ministra, tendo passado inclusive pelo desconforto de ver uma audiência com ela ser substituída por um encontro com o Diretor da Biblioteca Nacional com aviso prévio de algumas poucas horas. A Secretaria de Cultura do PT acredita, como afirmou o Ministério, que a impossibilidade dessa audiência, tentada durante meses, se deveu a um “problema de agenda” da Ministra? A Secretaria de Cultura do PT concorda com a incorporação do PNLL à Biblioteca Nacional, gesto inacreditável para quem conhece as atribuições da Biblioteca? Ou a Secretaria de Cultura do PT vê algum interesse político da Ministra nessa incorporação?
9.Em sua suposta refutação ao meu artigo, Morgana Eneile fez alusão ao fato de que a “Cultura Digital … teve debate específico na campanha de Dilma realizado pela Secretaria Nacional de Cultura do PT em conjunto com diversos militantes do segmento”. Alegrou-me muito a referência, porque em seu pronunciamento sobre a cultura digital, a Presidenta Dilma afirmou que o projeto de reforma da lei dos direitos autorais elaborado pelo governo Lula era “dos mais avançados”, reconhecendo que depois da internet a “realidade já não é a mesma”. No entanto, a Ministra Ana de Hollanda, como apontado acima, declarou que “ninguém conhece muito bem” qual é essa revisão. A Secretaria de Cultura do PT nota alguma contradição entre o projeto da Presidenta Dilma para a cultura digital e as ações da Ministra? Ou não? Se a Secretária de Cultura do PT é capaz de perceber a óbvia contradição, de que lado ela se coloca, dos compromissos de campanha assumidos pela Presidenta Dilma ou das declarações dadas pela Ministra Ana de Hollanda?
10.A Secretaria de Cultura do PT confirma, nega ou ignora o relato de que, no ato dos artistas em apoio à candidatura Lula em 2006, realizado no Canecão e organizado por Antônio Grassi—um dos nomes fortes do atual Ministério--, teria sido necessária a intervenção da secretaria da Presidência para que Gilberto Gil, então Ministro da Cultura do país, não fosse impedido de falar? A Secretaria de Cultura do PT enxerga alguma relação entre esse relato e o atual estado de coisas do MinC?
11.A Secretaria de Cultura do PT confirma, nega ou ignora o relato de que, no ato dos artistas em apoio a Dilma Rousseff, realizado no Teatro Casa Grande, no Leblon, em 2010, Juca Ferreira, então Ministro da Cultura do país, teria sido desconvidado a falar no evento, através de recado enviado a um de seus subordinados? A Secretaria de Cultura do PT enxerga alguma relação entre esse relato e o atual estado de coisas do MinC?
12.Em seu texto, Morgana Eneile faz alusão ao fato de que Gilberto Gil citou o programa de governo A Imaginação a Serviço do Brasil, mencionando que ali está presente a “visão antropológica do fazer-saber cultural”, como se isso refutasse algo do que eu disse no texto original. Por mais que eu tenha me alegrado com a notícia de que a Secretária de Cultura do PT já ouviu falar do conceito antropológico de cultura, não posso deixar de notar a patente contradição: o conceito antropológico de cultura, não o ignorará Eneile, pressupõe que todos os seres humanos que vivem em sociedade são produtores de cultura. Este foi, está corretíssima Eneile, o conceito que orientou o ministério Gil-Juca. Por outro lado, todas as declarações da Ministra Ana de Hollanda sobre os “criadores” de cultura os associam à chamada “classe artística”, cujos limites geográficos e classistas já estão, suponho, claros para quem acompanha o furdunço. A Secretaria trabalha com o conceito antropológico de cultura sancionado pelo Ministério de Lula ou acompanha a Ministra Ana de Hollanda em sua redução dos “criadores” à “classe artística”? A Secretaria enxerga relevância prática nessa questão teórica?
13.A Secretaria de Cultura do PT tem ciência do fato de que inúmeros petistas, espalhados em dezenas de coletivos de cultura em todo o país, neste momento assinam uma carta à Presidenta Dilma com veementes protestos contra o MinC, afirmando que “a Ministra Ana de Hollanda adotou uma postura que não é condizente com o que se espera de um Ministro de Estado à altura da posição que o Brasil ocupa hoje no mundo”? A Secretaria de Cultura do PT apoia, desautoriza ou ignora os inúmeros petistas que estão assinando este documento? A Secretaria de Cultura do PT tem algo a dizer sobre as muitas denúncias nele feitas?
14.Tendo disponibilizado em sua página web o texto do anteprojeto de reforma da lei de direitos autorais, o MinC de Ana de Hollanda não deu a conhecimento público a exposição de motivos que o acompanhava. A ausência do relatório com todas as contribuições da população, assimiladas ou rejeitadas no texto, é grave, posto que está em patente contradição com a retórica do Ministério, de que é necessária mais discussão acerca desse anteprojeto sobre o qual o MinC Gil-Juca trabalhou durante seis anos e que já havia sido enviado à Casa Civil, depois de hercúleo trabalho. O MinC diz que quer discutir mais, mas sonega o histórico da discussão. A Secretaria de Cultura tem algo a dizer a respeito?
15.Com apoio da bancada petista, a Assembleia Legislativa de São Paulo realizou uma CPI sobre o ECAD. O relatório final aponta, tanto em São Paulo como no Mato Grosso do Sul, onde ocorreu CPI análoga, indícios de crimes como “falsidade ideológica, sonegação fiscal, apropriação indébita, enriquecimento ilícito, formação de quadrilha, formação de cartel e abuso de poder econômico". No entanto, a Ministra Ana de Hollanda já se opôs categoricamente ao estabelecimento de órgão fiscalizador, tal como exigido pela Lei 12.343/2010, sancionada pelo Presidente Lula em 2 de dezembro. A Secretaria de Cultura do PT tem algo a dizer sobre essa óbvia contradição entre a letra da lei—aprovada em nosso governo, no governo do PT—e as declarações da Ministra?
Se Morgana Eneile tem razão em sua crítica a meu texto, devem existir respostas claras e inequívocas a essas perguntas, posto que elas se encontram no centro dos debates atuais sobre a política cultural do MinC. Se, por outro lado, eu estou correto ao argumentar que ainda não está dada a palavra final sobre qual será a política cultural do PT para o país, então cabe a cada petista informar-se da melhor maneira possível sobre os debates, cobrar coerência de seus dirigentes, posicionar-se sobre esses conflitos e assumir uma postura que faça jus ao legado emancipatório do Partido dos Trabalhadores. Ainda é tempo de corrigir o rumo. É o legado do Presidente Lula e os compromissos da Presidenta Dilma que estão em jogo.
Saudações petistas.
É muito positivo que a Secretária Nacional de Cultura do PT, Morgana Eneile, tenha tomado o tempo de responder ao meu texto sobre a esquerda e a cultura, publicado aqui.
Por Idelber Avelar [12.04.2011 10h20]
É muito positivo que a Secretária Nacional de Cultura do PT, Morgana Eneile, tenha tomado o tempo de responder ao meu texto sobre a esquerda e a cultura, publicado aqui na revista Fórum. Considerando o marginalíssimo papel cumprido pela Secretária nos amplos debates acerca dos rumos do MinC que têm tido lugar nas mídias eletrônica e impressa nos últimos três meses e meio, ter elicitado um pronunciamento dela já é motivo suficiente de comemoração, ainda que Eneile tenha optado por dialogar com algo bem diferente do que escrevi, como atestam as aspas mentirosamente colocadas em palavras que eu não usei.
Passemos então a fazer com o texto de Eneile o que ela não fez com o meu, ou seja, citá-lo corretamente, aspeando somente o que a Secretária efetivamente escreveu. Esta não será, no entanto, uma demolição do texto de Eneile. Acredito que é produtivo colocar tarefas mais difíceis do que aquelas que se apresentam a nós de forma mais óbvia. A refutação dos trechos mentirosamente aspeados só servirá para introduzir o que realmente interessa, a segunda parte da réplica, na qual ofereço 15 perguntas que, sendo verdadeiro o que diz a Secretária, ela não terá nenhuma dificuldade em responder.
Segundo a autora, eu desconheço ou omito “o processo histórico de construção política e programática do PT” com o “objetivo de comprovar seu equivocado raciocínio, segundo o qual os avanços na Cultura, durante o governo Lula, teriam ocorrido 'apesar' do PT.”
Já fui acusado de muita coisa na internet, mas de desconhecer o processo de construção do PT, confesso que foi a primeira vez. Para qualquer um que tenha acompanhado as campanhas petistas na blogosfera brasileira nos últimos seis anos, a afirmativa causará estupefação. Mas não é o autor, claro, o que interessa aqui, e sim o raciocínio. Segundo Eneile, eu teria dito que os avanços na Cultura durante o governo Lula teriam ocorrido “apesar” do PT. Usando o ótimo motor de busca da revista Fórum, procurei a palavra “apesar”, que Eneile coloca entre aspas. Não há ocorrências da palavra do meu texto. Por que ela está entre aspas, Eneile, se eu jamais a usei? De onde você deduz que esse é o meu raciocínio, se no texto que efetivamente escrevi está lá, com todas as letras: “para ele [o MinC Gil / Juca] contribuíram muitos petistas, especialmente no segundo e terceiro escalões do ministério”? Quem está omitindo o quê aqui?
Mais adiante, a autora de novo aspeia o que eu não disse, ao afirmar “é interessante notar que o texto de Avelar aponta para a suposta 'ausência' do PT” … Ora, como pode comprovar o leitor, na única ocorrência da palavra “ausência” no meu texto, o seu antecedente óbvio é “a existência de um projeto coerente para a cultura”. Só por analfabetismo funcional ou má fé é possível confundir “ausência de um projeto coerente para a cultura no PT” com “ausência do PT”, mas é exatamente essa operação que realiza Eneile. Meu texto não nega que o PT realizou excepcionais gestões da cultura em suas administrações municipais. O texto explicitamente cita as experiências de São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte, entre inúmeras outras que poderiam ser arroladas. Meu texto diz, sim, que um projeto coerente para a cultura que unifique o PT em nível nacional ainda não existe, está por se construir, e eu espero demonstrar, ao longo dessa exposição, que é de interesse de todos os petistas reconhecer isso.
Na sequência, a autora se refere a meu texto pela terceira vez, agora com uma paráfrase e, incrivelmente, pela terceira vez, de forma mentirosa. Diz o texto de Eneile: “Um dos maiores equívocos conceituais do texto de Avelar é associar o PT ao modelo ‘bom negócio’ da Lei Rouanet”.
Eneile aqui confunde uma relação de coexistência temporal com uma relação de conexão causal. Meu texto jamais “associa” o PT à Lei Rouanet, no sentido de atribuir ao partido responsabilidade por ela. Sim, Morgana, eu sei que o PT não governava o Brasil em 1991. O texto simplesmente diz: “no período da Lei Rouanet, reforçam-se os laços entre a chamada 'classe artística' e o PT”, o que é fato histórico cabalmente comprovável, apesar de que muitos artistas já haviam se aproximado do PT durante a década de 80, especialmente na campanha Lula-Bisol de 1989. Essa aproximação, evidentemente, só engrandece o PT. Mas ela também contribui para o complexo quadro atual, no qual uma multiplicidade de sujeitos petistas têm relações bastante diferentes com o processo vivido pelo MinC-- diferenças que o texto de Eneile, ao criar um “nós” petista convenientemente unificado, escamoteia.
Apesar das paráfrases desonestas e das aspas mentirosamente colocadas, existe, sim, no texto de Eneile um substrato real que vale a pena discutir-- e é a esse tema, mais importante, que passo agora. Como sabem milhares de petistas esparramados pelo Brasil nos pontos de cultura, nas secretarias municipais, na militância da cultura digital e em vários outros fóruns, há uma enorme insatisfação com os rumos tomados pelo MinC. Se há realmente um projeto para a cultura nacional que unifique o PT, não seria difícil, suponho, para a Secretária de Cultura do partido responder algumas dessas 15 perguntas.
1.Um dos primeiros atos da nova Ministra foi a retirada do selo Creative Commons da página web do Ministério, eliminando um modelo de licenciamento governamental flexível, no qual o Brasil foi pioneiro. Inúmeros petistas que trabalharam na gestão Gil-Juca—como corretamente reconhece o texto de Eneile, ao se referir ao papel do PT no Ministério de Lula--se juntaram à indignação dos ativistas da cultura digital. Qual é a posição da Secretaria de Cultura do PT sobre esse ato da Ministra?
2.A Ministra Ana de Hollanda recentemente afirmou que a fiscalização estatal sobre o ECAD seria uma intervenção indevida do estado, e em outro pronunciamento chegou a comparar dita fiscalização com a ditadura militar. No entanto, a Lei 12.343/2010, do dia 2 de dezembro, elaborada pelo Ministério Gil-Juca e sancionada pelo Presidente Lula, prevê: 1.9.1 Criar instituição especificamente voltada à promoção e regulação de direitos autorais e suas atividades de arrecadação e distribuição. A Secretaria de Cultura do PT concorda com a Ministra que essa instituição seria uma ingerência indevida e ditatorial do estado ou se dispõe a lutar pela implementação da lei à qual tantos petistas contribuíram no MinC Gil-Juca, e que foi sancionada pelo Presidente Lula?
3.Em recente audiência no Senado Federal, a Ministra Ana de Hollanda afirmou que o Creative Commons é “uma propagandinha de um serviço que uma entidade promove”. No entanto, inúmeros ativistas digitais com históricas relações com o PT, como Marcelo Branco, Sérgio Amadeu e muitos outros, apontaram que o Creative Commons não é propaganda, posto que não vende nada, sendo simplesmente uma forma de licenciamento flexível que permite ao autor decidir quais direitos ele quer manter e quais ele quer compartilhar. A Secretaria de Cultura do PT mantém a visão da Ministra, de que o CC é uma “propagadinha”, ou concorda com os inúmeros petistas que atuam na cultura digital?
4.Na mesma audiência no Senado, a Ministra afirmou que pediu de volta à Casa Civil o projeto de revisão da lei de Direitos Autorais, exaustivamente discutido ao longo do governo Lula, porque “nós ainda não tínhamos a pessoa para cuidar da área dos direitos intelectuais”. O que a Ministra omitiu no depoimento é que ela demitiu o responsável pela Diretoria de Direitos Intelectuais, Marcos Souza, respeitadíssimo em Brasília com um dos maiores especialistas brasileiros em direitos autorais, nomeando para seu posto Marcia Regina Barbosa, de históricas afinidades com o ECAD. A Secretaria de Cultura do PT tem posição sobre a demissão de um profissional chave na revisão dos direitos autorais durante o governo Lula?
5.Em recente declaração, a Ministra afirmou que “ninguém conhece muito bem” o projeto de revisão dos direitos autorais enviados pelo MinC Gil-Juca à Casa Civil. No entanto, o Ministério da Cultura de Lula realizou 6 anos de debates, dezenas de reuniões em todo o país, seminários nacionais e internacionais, e promoveu 75 dias de consulta pública na internet, através da qual 7500 contribuições foram feitas. A Secretaria de Cultura do PT concorda com Ana de Hollanda, que ninguém “conhece muito bem” a revisão proposta pelo governo Lula, ou se junta aos inúmeros petistas que demonstraram estupefação ante a declaração da Ministra, feita depois de ela ter reconhecido que não leu o projeto de revisão da lei e de ter declarado que “nem é o caso” de ela o ler?
6.O ator Antônio Grassi, reconhecidamente um dos nomes fortes do atual Ministério, presidente da Funarte e de históricas relações com a Ministra, recentemente declarou que “houve um momento em que se fomentou a importância de fazer inclusão social por meio da arte, e a excelência artística ficou em segundo plano”. Considerando—e nisso acredito que eu e Morgana, como petistas, podemos concordar—que o governo FHC jamais fez inclusão social por meio da arte, e que o projeto de inclusão social via arte foi a marca do governo do PT, a declaração de Grassi só pode se referir ao projeto de cultura do governo Lula. A Secretaria de Cultura do PT concorda com Grassi que a inclusão social por meio da arte deixa “a excelência artística em segundo plano”? A Secretaria de Cultura trabalha com os conceitos de inclusão social pela cultura e de excelência artística como esferas dicotômicas, ou discorda de Antônio Grassi? A Secretaria de Cultura concorda que o MinC de Lula deixou “a excelência artística em segundo plano”?
7.Um dos jornalistas que mais conhecem as entranhas do PT, Renato Rovai, deu a notícia de que “na bancada de deputados petistas, há uma insatisfação quase generalizada com as ações do ministério”. A Secretaria de Cultura do PT confirma, desmente ou ignora a notícia dada por Rovai, de que o Ministério de Ana de Hollanda produz insatisfação “quase generalizada” na bancada petista? Se a notícia dada por Rovai é correta, a Secretaria de Cultura do PT se coloca de qual lado, da insatisfação da bancada petista ou do Ministério de Ana de Hollanda?
8.A lista de desastres do atual Ministério da Cultura é tão grande que, no tempo que eu gasto para escrever um texto de resposta à Secretária de Cultura do PT, mais um quadro importante do MinC se demite. Neste domingo, o Dr. José Castilho Marques Neto entregou seu cargo no Plano Nacional do Livro e da Leitura (marco importante no MinC Lula), fazendo uma denúncia gravíssima: a de que tentou desde o começo do governo ser recebido pela Ministra, tendo passado inclusive pelo desconforto de ver uma audiência com ela ser substituída por um encontro com o Diretor da Biblioteca Nacional com aviso prévio de algumas poucas horas. A Secretaria de Cultura do PT acredita, como afirmou o Ministério, que a impossibilidade dessa audiência, tentada durante meses, se deveu a um “problema de agenda” da Ministra? A Secretaria de Cultura do PT concorda com a incorporação do PNLL à Biblioteca Nacional, gesto inacreditável para quem conhece as atribuições da Biblioteca? Ou a Secretaria de Cultura do PT vê algum interesse político da Ministra nessa incorporação?
9.Em sua suposta refutação ao meu artigo, Morgana Eneile fez alusão ao fato de que a “Cultura Digital … teve debate específico na campanha de Dilma realizado pela Secretaria Nacional de Cultura do PT em conjunto com diversos militantes do segmento”. Alegrou-me muito a referência, porque em seu pronunciamento sobre a cultura digital, a Presidenta Dilma afirmou que o projeto de reforma da lei dos direitos autorais elaborado pelo governo Lula era “dos mais avançados”, reconhecendo que depois da internet a “realidade já não é a mesma”. No entanto, a Ministra Ana de Hollanda, como apontado acima, declarou que “ninguém conhece muito bem” qual é essa revisão. A Secretaria de Cultura do PT nota alguma contradição entre o projeto da Presidenta Dilma para a cultura digital e as ações da Ministra? Ou não? Se a Secretária de Cultura do PT é capaz de perceber a óbvia contradição, de que lado ela se coloca, dos compromissos de campanha assumidos pela Presidenta Dilma ou das declarações dadas pela Ministra Ana de Hollanda?
10.A Secretaria de Cultura do PT confirma, nega ou ignora o relato de que, no ato dos artistas em apoio à candidatura Lula em 2006, realizado no Canecão e organizado por Antônio Grassi—um dos nomes fortes do atual Ministério--, teria sido necessária a intervenção da secretaria da Presidência para que Gilberto Gil, então Ministro da Cultura do país, não fosse impedido de falar? A Secretaria de Cultura do PT enxerga alguma relação entre esse relato e o atual estado de coisas do MinC?
11.A Secretaria de Cultura do PT confirma, nega ou ignora o relato de que, no ato dos artistas em apoio a Dilma Rousseff, realizado no Teatro Casa Grande, no Leblon, em 2010, Juca Ferreira, então Ministro da Cultura do país, teria sido desconvidado a falar no evento, através de recado enviado a um de seus subordinados? A Secretaria de Cultura do PT enxerga alguma relação entre esse relato e o atual estado de coisas do MinC?
12.Em seu texto, Morgana Eneile faz alusão ao fato de que Gilberto Gil citou o programa de governo A Imaginação a Serviço do Brasil, mencionando que ali está presente a “visão antropológica do fazer-saber cultural”, como se isso refutasse algo do que eu disse no texto original. Por mais que eu tenha me alegrado com a notícia de que a Secretária de Cultura do PT já ouviu falar do conceito antropológico de cultura, não posso deixar de notar a patente contradição: o conceito antropológico de cultura, não o ignorará Eneile, pressupõe que todos os seres humanos que vivem em sociedade são produtores de cultura. Este foi, está corretíssima Eneile, o conceito que orientou o ministério Gil-Juca. Por outro lado, todas as declarações da Ministra Ana de Hollanda sobre os “criadores” de cultura os associam à chamada “classe artística”, cujos limites geográficos e classistas já estão, suponho, claros para quem acompanha o furdunço. A Secretaria trabalha com o conceito antropológico de cultura sancionado pelo Ministério de Lula ou acompanha a Ministra Ana de Hollanda em sua redução dos “criadores” à “classe artística”? A Secretaria enxerga relevância prática nessa questão teórica?
13.A Secretaria de Cultura do PT tem ciência do fato de que inúmeros petistas, espalhados em dezenas de coletivos de cultura em todo o país, neste momento assinam uma carta à Presidenta Dilma com veementes protestos contra o MinC, afirmando que “a Ministra Ana de Hollanda adotou uma postura que não é condizente com o que se espera de um Ministro de Estado à altura da posição que o Brasil ocupa hoje no mundo”? A Secretaria de Cultura do PT apoia, desautoriza ou ignora os inúmeros petistas que estão assinando este documento? A Secretaria de Cultura do PT tem algo a dizer sobre as muitas denúncias nele feitas?
14.Tendo disponibilizado em sua página web o texto do anteprojeto de reforma da lei de direitos autorais, o MinC de Ana de Hollanda não deu a conhecimento público a exposição de motivos que o acompanhava. A ausência do relatório com todas as contribuições da população, assimiladas ou rejeitadas no texto, é grave, posto que está em patente contradição com a retórica do Ministério, de que é necessária mais discussão acerca desse anteprojeto sobre o qual o MinC Gil-Juca trabalhou durante seis anos e que já havia sido enviado à Casa Civil, depois de hercúleo trabalho. O MinC diz que quer discutir mais, mas sonega o histórico da discussão. A Secretaria de Cultura tem algo a dizer a respeito?
15.Com apoio da bancada petista, a Assembleia Legislativa de São Paulo realizou uma CPI sobre o ECAD. O relatório final aponta, tanto em São Paulo como no Mato Grosso do Sul, onde ocorreu CPI análoga, indícios de crimes como “falsidade ideológica, sonegação fiscal, apropriação indébita, enriquecimento ilícito, formação de quadrilha, formação de cartel e abuso de poder econômico". No entanto, a Ministra Ana de Hollanda já se opôs categoricamente ao estabelecimento de órgão fiscalizador, tal como exigido pela Lei 12.343/2010, sancionada pelo Presidente Lula em 2 de dezembro. A Secretaria de Cultura do PT tem algo a dizer sobre essa óbvia contradição entre a letra da lei—aprovada em nosso governo, no governo do PT—e as declarações da Ministra?
Se Morgana Eneile tem razão em sua crítica a meu texto, devem existir respostas claras e inequívocas a essas perguntas, posto que elas se encontram no centro dos debates atuais sobre a política cultural do MinC. Se, por outro lado, eu estou correto ao argumentar que ainda não está dada a palavra final sobre qual será a política cultural do PT para o país, então cabe a cada petista informar-se da melhor maneira possível sobre os debates, cobrar coerência de seus dirigentes, posicionar-se sobre esses conflitos e assumir uma postura que faça jus ao legado emancipatório do Partido dos Trabalhadores. Ainda é tempo de corrigir o rumo. É o legado do Presidente Lula e os compromissos da Presidenta Dilma que estão em jogo.
Saudações petistas.
Foto por http://www.flickr.com/photos/agecombahia/.
Seguem a resposta de Morgana e o artigo de Idelber deu início ao debate
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