Vale a pena repassar alguns momentos da história recente da esquerda com a cultura. Dentro desse contexto, é possível apreciar a revolução que representou a experiência do Ministério da Cultura de Lula.

Por Idelber Avelar
REVISTA FÓRUM

O PT não tem, nem nunca teve, um projeto de política cultural para o país. O PT não tem, nem nunca teve — e quem me acompanha na internet sabe que quem fala aqui é um petista — uma compreensão de política cultural que fosse além das generalidades do tipo “devemos garantir a expressão das mais variadas manifestações culturais” ou “devemos criar condições para a circulação da cultura popular”. Isso não quer dizer que boas secretarias de cultura não tenham existido nas administrações municipais do partido. Os casos de Porto Alegre e Belo Horizonte, e mesmo da São Paulo de Luiza Erundina e Marta Suplicy, podem ser mencionados como exemplos de que, mesmo sem uma política cultural nacional, é possível fazer com a cultura, em nível municipal, muito mais que nossas elites tradicionalmente fizeram. Mas as polêmicas recentes envolvendo o Ministério da Cultura deixaram clara a falta que faz, dentro do partido, a existência de um projeto coerente para a cultura.

Para entender essa ausência, talvez valha a pena repassar alguns momentos da história recente da esquerda com a cultura. Dentro desse contexto, é possível apreciar a revolução que representou a experiência do Ministério da Cultura de Lula. Divido essa trajetória em quatro momentos, que representam quatro relações diferentes da esquerda com a cultura brasileira. Não são momentos estanques, e em certa medida eles se sobrepõem e se misturam. Mas creio que eles apontam para quatro matizes distintos na relação da esquerda com a cultura.

A esquerda partidária e os movimentos sociais organizam um primeiro projeto orgânico para a cultura brasileira com o CPC da UNE . Fundado em 1961 a partir de uma dissidência do Teatro de Arena, o CPC teve o grande mérito de instalar a produção cultural no interior da luta pela transformação da sociedade brasileira. Os cepecistas foram os primeiros a atentar de modo sistemático para a contradição com a qual brigava a produção cultural de esquerda – a saber, a de falar para o proletariado mas contar com um público ouvinte, leitor e espectador que era majoritariamente burguês. O eixo da intervenção do CPC era o conceito de nacional-popular, ou seja, uma compreensão de cultura brasileira que afirmava que a arte nacional seria aquela que tivesse um caráter genuinamente popular. A partir daí, o cepecismo derivou um dos vícios crônicos da reflexão de esquerda sobre a cultura: a divisão entre arte e cultura “autenticamente” populares e aquelas que seriam meros reflexos de uma cultura importada e inautêntica. Daí para as passeatas contra a guitarra elétrica foi um pulo. Para complicar mais a coisa, o CPC não percebeu que os limites entre a arte erudita (tolerada), a cultura de massas (demonizada) e a cultura popular (louvada) eram bem mais fluidos do que se imaginava ao princípio. A concepção cepecista de cultura foi derrotada num dos maiores embates culturais da história moderna brasileira, aquele que opôs o trovadorismo acústico de protesto, à la Geraldo Vandré (privilegiado pelo CPC como arte autêntica), ao tropicalismo de Caetano e Gil. Com uma compreensão bem mais sofisticada do que, naquele momento, ainda não se chamava globalização, o tropicalismo fez com que, em 1968/69, o cepecismo já fosse uma forma anacrônica de entender a cultura brasileira. Existem intelectuais petistas que, quando falam em cultura popular, ainda a pensam nos moldes do CPC.

Ao longo dos anos 70, a esquerda brasileira pensa sua relação com a política cultural através daquilo que poderíamos chamar o modelo Embrafilme. A Empresa Brasileira de Filmes não foi sua única representante, mas foi seu grande emblema. Enquanto dramaturgos de esquerda como Dias Gomes eram incorporados pela TV Globo como roteiristas de novela, a ditadura absorvia elementos do discurso nacionalista de esquerda dos anos 60 para formular sua própria política cultural. Além de outorgar generosos subsídios a megaconglomerados (TV Globo, Editora Abril etc.), o estado impulsionou uma nova política de turismo que se alimentava da mercantilização da cultura popular. No nordeste, as Casas de Cultura Popular operaram em estreita colaboração com a indústria do turismo. Através de órgãos como o Conselho Federal de Cultura, o estado faria do ideologema “Cultura para o povo” sua nova ordem. Para a elaboração de tais políticas, o estado tecnocrático recorreu, em grande medida, a intelectuais tradicionais e conservadores remanescentes da antiga sociedade agro-exportadora, então agrupados majoritariamente em academias de letras e institutos históricos e geográficos (IBGEs). Na esquerda, a política cultural ficou restrita a uma variação do conhecido “entrismo”: mesmo com um regime de direita, era possível “ocupar espaços” (como o da Embrafilme), pagando, no processo, o preço de ter que coincidir com a ditadura numa visão nacionalista estreita. Os sucessos da Embrafilme foram notáveis e o cinema nacional chegou a representar 35% do público espectador no país. Mas o modelo Embrafilme também contribuiu para que a esquerda não conseguisse pensar a política cultural mais além do mecenato estatal. A esquerda só deixaria de pensar as relações entre estado e política cultural fora do mecenato a partir de um recurso eminentemente mercadológico, a Lei Rouanet.

Com a redemocratização, as relações da esquerda com a política cultural entram naquilo que poderíamos chamar o momento Lei Rouanet. O financiamento da cultura é deslocado para uma parceira entre estado e capital privado, através da figura da isenção fiscal. A Lei Rouanet, promulgada em 1991, tem o mérito de oferecer uma alternativa ao mecenato estatal, mas se mantém presa a um modelo que, na prática, permite ao capital privado fazer propaganda de si mesmo com dinheiro público. Do ponto de vista da empresa, a renúncia fiscal só tem sentido se for entendida como investimento em imagem, o que faz com que sejam privilegiadas as iniciativas que já têm garantidas um nicho de mercado. Daí os “escândalos” com os quais periodicamente nos acostumamos na cobertura midiática da Lei Rouanet: um patrocínio estatal ao Circo de Soleil, por exemplo, ou incentivos para que grandes artistas globais tenham seus espetáculos de teatro financiados via renúncia fiscal. Trata-se de iniciativas que não são ilegais nem antiéticas, necessariamente, mas que contribuem a que a lei termine reforçando a submissão da cultura à lógica do mercado. No período da Lei Rouanet, reforçam-se os laços entre a chamada “classe artística” e o PT—entendendo-se a expressão “classe artística” no sentido em que a entende a atual ministra, ou seja, os grandes nomes da indústria cinematográfico-teatral-fonográfica do eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Essa aproximação é importante, porque ajuda a entender a articulação que levou a uma opção de não-continuidade entre os Ministérios da Cultura de Lula e de Dilma. Nessa articulação, cumpriu papel central um dos representantes históricos da “classe artística” no PT, o ator Antônio Grassi.

O momento Lula é marcado por uma ruptura com concepções anteriores de política cultural na esquerda. Por uma feliz conjunção de fatores, o Ministério da Cultura sob Gilberto Gil e, depois sob Juca Ferreira, revoluciona a compreensão de cultura que tinha a esquerda brasileira. Esse movimento não passa diretamente pelo PT, mas para ele contribuíram muitos petistas, especialmente no segundo e terceiro escalões do ministério. Em primeiro lugar, o MinC Gil/Juca rompe com um velho dogma da esquerda: trata da produção cultural em diálogo com as novas tecnologias, sem demonizá-las. Entende que não é possível pensar uma política cultural de esquerda sem uma compreensão renovada do papel do audiovisual, da internet, das novas técnicas de reprodutibilidade digital. Entende também que não é papel dos sujeitos políticos estabelecer distinções entre a cultura que seria autenticamente brasileira e aquela que não o seria. Nesse sentido, foi o primeiro ministério da cultura do país que incorporou as lições do tropicalismo. Além disso, o MinC Gil / Juca abandona de vez o dirigismo tradicional da esquerda e, ao invés de trabalhar com a ideia de “levar” cultura à sociedade, estabelece, com o projeto dos Pontos de Cultura, uma concepção nova e revolucionária: a cultura já está sendo produzida pelos sujeitos sociais. O que há que se fazer é criar teias, redes, possibilidades de circulação. O MinC Gil / Juca sai do terreno reservado à cultura (o de adorno beletrístico) e passa a colocar em xeque os seus sustentáculos econômicos — daí o projeto de revisão da lei de direitos autorais, que se choca diretamente com os interesses do lobby das patentes e da propriedade intelectual. Com uma multiplicidade de fóruns, consultas públicas, congressos e encontros, o Ministério gera uma massa crítica que se sente cada vez mais incluída, cada vez mais agente do movimento vivo da política cultural. Erros aconteceram, limitações houve, e nem tudo foi bem feito. Mas não há dúvidas de que a gestão Gil / Juca abre um outro paradigma nas relações da esquerda com a política cultural.

É esse novo horizonte, tão promissor, que se encontra agora ameaçado.