segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

E A AUTONOMIA DO BANCO CENTRAL EM RELAÇÃO AO MERCADO FINANCEIRO?

Remédio em excesso mata

Amir Khair[1]

Os remédios têm em suas bulas a posologia, ou seja, as dosagens que podem ser tomadas para produzir o melhor efeito no combate ao problema de saúde. O médico, após o diagnóstico, tem que decidir qual o remédio ministrar e a posologia adequada ao tratamento.

O mesmo ocorre para a economia. Uma das doenças a ser tratada é a inflação e o remédio mais usado tem sido uma alta taxa básica de juros, a Selic. A partir do dia 06/dez um novo remédio foi usado pelo Banco Central (BC) visando conter "certos excessos do mercado de crédito". Ele impôs uma reserva maior de dinheiro pelos bancos quando concederem empréstimos para consumidores com prazo acima de dois anos. No caso de automóveis, essa reserva varia conforme a entrada que o comprador do veículo der. Além disso, o BC elevou o recolhimento compulsório dos bancos, tirando da economia cerca de R$ 65 bilhões.

Os efeitos deste remédio foram eficazes e imediatos, pois de acordo com o BC, até o final de janeiro, a taxa do crédito pessoal subiu de 40,3% para 49,4% ao ano, o prazo médio reduziu de cinco para quase três anos e a média diária das concessões de crédito pessoal caiu 19%! No caso dos veículos, a taxa do financiamento subiu cinco pontos nos bancos convencionais e quatro nos bancos de montadoras, o prazo médio recuou de três anos e meio para menos de três e a concessão de crédito caiu 45% nos bancos convencionais e 35% nos bancos das montadoras.

Outros indicadores confirmam queda ou estabilidade no nível de atividades depois dessas medidas macroprudenciais. A Pesquisa Mensal de Comércio (PMC) do IBGE de dezembro ficou estável em relação a novembro, e em janeiro, o indicador de atividade do comércio elaborado pela Serasa apresentou queda de 2,7%. Avalia-se que as vendas do varejo tendem a ser prejudicadas pela redução da oferta de crédito.

Quanto ao remédio taxa básica de juros a posologia adotada mundialmente é aproximá-la da taxa de inflação. Atualmente está um ponto abaixo da inflação na média mundial e nos países emergentes meio ponto abaixo. Mas no Brasil é de 5,5 pontos acima, ou seja, uma posologia anormalmente elevada, que além de não resolver a doença da inflação traz vários efeitos colaterais danosos ao corpo econômico.

1) Aumenta as despesas do governo – A Selic contamina no curto e no médio prazo todas as taxas de juros dos títulos do governo federal cuja dívida está atualmente em R$ 1,7 trilhões. Cada ponto de aumento da Selic aumenta a despesa com juros do governo federal em R$ 17 bilhões! Como essa dívida é crescente, especialmente por causa da elevação das reservas internacionais, do aporte de recursos do Tesouro Nacional ao BNDES – que são feitos com a emissão de títulos – e da Selic, esse dano será maior neste ano, anulando parte expressiva do corte de R$ 50 bilhões no orçamento do governo federal.

2) Causa elevado custo de carregamento das reservas internacionais – O BC tem mais de US$ 300 bilhões de reservas, que são aplicadas especialmente em títulos do Tesouro americano com juros de cerca de 1,5% e paga juros de 11,25%. Além disso, há a perda cambial com a valorização do real perante o dólar. No ano passado o custo de carregamento desta dívida foi estimado em R$ 26,6 bilhões pelo BC, mas esse cálculo parece conservador frente a outros estudos que apontam para R$ 45 bilhões. Neste ano deverá se elevar mais, pois crescem as reservas e a Selic em relação ao ano passado.

3) Valoriza o real perante o dólar – os especuladores do mercado internacional captam recursos a taxas próximas a zero e aplicam nos títulos do governo federal que pagam taxas elevadas. São ganhos líquidos e certos, sem riscos. O BC está dando um presentão a esses especuladores para manter o real apreciado e funcionar como âncora cambial, barateando as importações e encarecendo nossas exportações. Isso tira o poder competitivo das empresas do País tanto interna quanto externamente, causando um rombo nas contas externas, que pode se tornar explosivo. Esse risco existe, caso se mantenha essa situação, pois a política dos países desenvolvidos é continuar inundando o mundo com suas moedas para permitir elevar suas exportações e reduzir suas importações.

O mais grave é que o paciente Brasil ainda não se deu conta que está tomando o remédio errado e em doses cavalares. Ele tem, ainda, uma boa saúde, mas está ficando cada vez mais debilitado com os efeitos colaterais do remédio. O pior é que o médico já avisou que vai elevar essa dosagem, pois não está havendo a cura e o paciente tem confiança no médico e não pensa em mudá-lo. Se continuar assim, corre sério risco de espalhar em seu organismo novos problemas, que certamente serão combatidos com mais elevação da dosagem do mesmo remédio. Assim, o paciente corre o risco de vir a morrer.

A pergunta que fica é: Não dá para trocar de remédio uma vez que o outro (medidas macroprudenciais) já provou sua eficácia além de não causar os efeitos colaterais apontados? Dá, e isso precisa ser feito imediatamente rumando em prazo, o mais curto possível, para as taxas de juros a nível internacional e continuar aferindo os efeitos das medidas macroprudenciais, regulando sua posologia para que o apetite de consumo não tencione a inflação.

O consumo das famílias, que responde por 75% do consumo total, é fortemente influenciado pela oferta de crédito via taxas de juros e prazos de financiamentos. As medidas macroprudenciais, que podem influir o nível da oferta de crédito e suas taxas de juros, têm efeito imediato. As taxas Selic levam, segundo o BC e o mercado financeiro, cerca de nove (!) meses para produzir efeito. Em nove meses ninguém sabe o que estará ocorrendo no mundo e em nossa economia, pois o tempo é longo demais para previsões. Há pouco não se previa a revolta no mundo árabe e ninguém sabe onde isso vai dar, com repercussões nos preços do petróleo, em forte ascensão.

Outra questão que chama a atenção é o ciclo vicioso criado pelo BC: 1) mantém a Selic elevada para servir como âncora cambial; 2) com isso atrai capital externo para lucrar com essa taxa; 3) isso aprecia o real; 4) para segurar essa apreciação o BC compra dólares aumentando as reservas; 5) reservas maiores atraem mais capital externo, pois aumenta a garantia às aplicações externas. Ou seja, ele cria o problema e o agrava com sua “solução”.

Várias vezes o jornalista Celso Ming, em sua coluna no Estado, chamou a atenção que, quanto maiores as reservas internacionais mais atração exercerão para a entrada de capital externo.

Como resultado desse processo da ação do BC, eleva-se a dívida bruta do País, as despesas com juros do governo federal e o custo do carregamento das reservas. E tudo isso tem efeito imediato; não precisa de nove meses para repercutir numa improvável alteração da inflação.

Quanto à teoria das expectativas de que as alterações da Selic servem para conduzir os agentes econômicos a adequar seus preços conforme a meta de inflação, isso não ocorre, pois ao contrário dos outros países, onde essa teoria funciona razoavelmente, a distância entre a Selic e a taxa de juros dos bancos é tão grande, que permite variar as taxas dos bancos conforme outros interesses visando ampliar seu mercado na disputa com bancos mais agressivos em sua expansão, além das pessoas e empresas terem mais alternativas de escolha das melhores ofertas de financiamento.

A teoria das expectativas faz mais sentido para as medidas macroprudenciais, pois o seu efeito é imediato sobre o crédito, que é a perna principal da adequação do nível de consumo. As expectativas, no entanto, estão sendo mais influenciadas pela inflação corrente do que pela inflação projetada, sempre sujeita a toda sorte de erros. A inflação está sendo influenciada mais pela realidade internacional nos preços dos alimentos e commodities do que por qualquer outro fator e sobre isso pouco se pode fazer a não ser restringir o galope do crédito.

Para que possa ocorrer a mudança do remédio velho para o de nova geração, que já mostrou sua eficácia, é necessário que o BC, que já dispõe de autonomia operacional em relação ao governo e aos políticos, comece a exercê-la também em relação ao mercado financeiro, o qual adora uma Selic elevada, pois amplia sem riscos seus lucros.

Para isso é fundamental cortar a relação simbiótica que sempre existiu entre ambos. Isso agora tem melhor chance de ocorrer, uma vez que os membros que compõem o Comitê de Política Monetária (Copom) são todos funcionários de carreira do próprio banco. Além disso, já passou da hora de usar o Boletim Focus baseado em cem instituições financeiras como fonte de consulta sobre projeção de inflação e da Selic. O BC precisa estender suas consultas à academia e às instituições que representam o setor real da economia se quiser ter maior credibilidade e possuir diagnósticos mais confiáveis e de melhor qualidade.

Já passou da hora de mudar de remédio.

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