quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O VOTO CONSERVADOR E O RELIGIOSO


‘Há uma ala do eleitorado que é, em primeiro lugar, conservadora e, em segundo lugar, religiosa’. Entrevista especial com Antônio Flávio Pierucci

“O voto religioso conservador tem muita afinidade com o pensamento conservador quando se trata de condenar qualquer abertura no sentido de liberalizar determinadas condutas e comportamentos. No entanto, a questão é mascarada e, por isso, uma hora você pensa que é um voto religioso, outra hora você tem certeza de que é um voto conservador”, constata o sociólogo Antônio Flávio Pierucci durante entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone. Pierucci analisa o movimento ultraconservador que se manifestou durante as eleições presidenciais.

Segundo Pierucci, "termina-se esta eleição com uma enorme interrogação, terminamos o primeiro turno acreditando que a religião tivesse uma grande influência, iniciamos o segundo turno acreditando que a influência iria crescer, mas a partir da metade do segundo turno os próprios políticos e seus quartéis generais de campanha entenderam que religião demais em uma campanha eleitoral atrapalha".

Antônio Flávio Pierucci é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP e especialista em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana. Na PUC-SP também realizou o mestrado em Ciências Sociais. É doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, onde é professor.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Podemos dizer que estas eleições manifestaram o surgimento de um movimento ultraconservador no Brasil?

Antônio Flávio Pierucci – Podemos sim. Isso pode ter passado despercebido nos últimos anos, mas um movimento que estava subterrâneo se formou e se apresentou já no final do primeiro turno destas eleições na internet. Foi uma verdadeira surpresa para muitos de nós, porque o movimento se manifestou de uma forma tão grande que suspeitamos que seu discurso seria muito eficaz, com efeito muito direto sobre as preferências eleitorais da candidata Dilma Rousseff. Até o início da apuração dos votos do primeiro turno, se imaginava que Dilma não tivesse sido eleita diretamente no primeiro turno por causa do efeito Erenice e do caso da violação dos segredos fiscais de alguns tucanos.

Mas, então, se percebeu que, na verdade, havia um movimento religioso agindo diretamente sobre o resultado das eleições. Levantou-se, inclusive, a hipótese de um ressurgimento de um voto evangélico. Com isso, comecei a receber telefonemas de muitos jornalistas que falavam “professor, você, que sempre negou a existência do voto evangélico, não acha que este ano vai acontecer isto ou aquilo?”. Eu respondia “Alguma coisa diferente está acontecendo neste ano, mas talvez não seja o caso de chamar isso de voto evangélico e muito menos de voto religioso, mas de voto puro e simplesmente conservador”. Há uma ala conservadora do eleitorado que é, em primeiro lugar, conservadora e, em segundo lugar, religiosa.

Não é pelo fato de as pessoas estarem se reunindo em igrejas e invocando o nome de Deus que possamos chamar este voto de religioso. O voto religioso progressista, ou de esquerda, nunca aparece com cara de voto religioso. Porém, o voto religioso conservador tem muita afinidade com o pensamento conservador quando se trata de condenar qualquer abertura no sentido de liberalizar determinadas condutas e comportamentos. No entanto, a questão é mascarada e, por isso, uma hora você pensa que é um voto religioso, outra hora você tem certeza de que é um voto conservador. Mas tanto na sua face religiosa ele é religiosamente conservador, quanto na sua face política ele é politicamente conservador.

IHU On-Line – Como surge esse conservadorismo?

Antônio Flávio Pierucci – Não nasce na Igreja, não nasce na estrutura hierárquica da Igreja no sentido de sua configuração geral, não nasce da CNBB, por exemplo, e não nasce de nenhuma organização das igrejas evangélicas. Ele nasce de movimentos que tem vida e que tem expressão dentro das igrejas. Por exemplo, este movimento que se manifestou sobre a questão do aborto está claramente ligado ao efeito de um movimento internacional de direita conservadora em matérias de costumes que usa o rótulo “pró-life”, ou seja, em defesa da vida.

Os grupos pró-vida não têm apenas inspiração globalizada, internacionalizada, ou norte-americanizada, são grupos financiados por grupos internacionais. E mais: são financiados e treinados. O pró-life não funciona só no período eleitoral, ele funciona o ano inteiro dando palestras, apresentado vídeos etc. Os vídeos horríveis que foram colocados na Internet, com mulheres fazendo aborto, fetos sendo atingidos por agulhas de crochê, sangrando, ou então com bonequinhos, embriões humanos ou mesmo fetos maiores feitos de silicone para explicar como o aborto assassina, como o aborto é um verdadeiro infanticídio, tudo isso vem sendo veiculado há mais tempo. Eu mesmo já assisti a um vídeo desses na internet cujo narrador acusa algumas tribos de índios brasileiros de praticarem infanticídio, explicando que algumas meninas são escolhidas para serem vítimas de rituais de infanticídio.

Nesta conjuntura das eleições uma outra coisa se sobrepôs e deu um pouco mais de combustível para essa questão: a acusação de que a candidata do governo faria restrições à liberdade de imprensa no país uma vez que o Presidente da República vinha reclamando muito da imprensa. Havendo, portanto, restrição da liberdade de imprensa, haveria restrições na liberdade de pregação religiosa. A liberdade de pregação religiosa seria, de alguma forma, não abolida completamente, mas seria restringida e tutelada.

Então, se criou uma espécie de paranoia que se difundia com requintes de imaginação. Chegaram a dizer, nesse sentido, que haveria uma restrição aos horários de pregação evangélica na televisão brasileira. E isso foi dito àqueles que participam dos cultos religiosos. No entanto, não são as igrejas católicas ou evangélicas como um todo que se manifestaram dessa forma, apenas algumas.

IHU On-Line – Por que o discurso conservador ganhou tamanho espaço nos debates eleitorais?

Antônio Flávio Pierucci – As políticas, as agendas, as pautas de intervenção, seja na economia, seja na política internacional ou em qualquer setor que for do governo, dois dois principais candidatos que se apresentaram é muito parecida. Hoje, as diferenças entre eles não são tão nítidas como eram antigamente. Isso faz com que você procure buscar em cada um dos dois lados aquilo que diferencia mais um do outro, e então as questões morais parecem ser um bom fator diferenciador e, desta forma, se tornam um grande operador de distinção. Foi isso que aconteceu com Dilma e Serra.

Se você olhar as propostas de governo da Dilma e do Serra não verá muita diferença, tanto que o Serra no início da campanha também começou a se apresentar como também um continuador das políticas do Lula. Essa semelhança cada vez maior das propostas políticas, das agendas de governo, faz com que os marqueteiros procurem buscar no adversário um elemento forte de distinção, de diferenciação. Isso está na religião, na questão do aborto e do homossexualismo e por aí afora. Muitos cientistas políticos, inclusive, pensam desta forma e afirmam que a tendência das campanhas eleitorais daqui para frente vai atacar diretamente a biografia de um ou de outro candidato.

IHU On-Line – Essa tendência ultraconservadora encontrou espaço na internet. Sendo este um meio dito “democrático”, o que isso pode significar?

Antônio Flávio Pierucci – A internet é um espaço toscamente democrático porque não há nenhum controle, você pode dizer qualquer coisa lá. Eu, como sociólogo, passo a vida estudando, me apresentando em congressos para ver o que as pessoas pensam das minhas ideias, para receber críticas. Na internet você está sozinho em sua casa e pode jogar uma calúnia ou uma promessa absolutamente irrealizável a respeito de qualquer coisa e enganar as pessoas. Não estou sugerindo que os controles sejam de censura, mas que abram a discussão. Ou seja, você deve se apresentar com nome e endereço, dizendo “eu penso assim”.

A internet ainda permite muito o anonimato, permite que ideias de outros sejam apropriadas por mim, por você, e, assim, nós passamos a vender essas ideias como nossas próprias. A internet hoje abre espaço para grupos excessivamente de direita, violentos, fascistas, grupos de discriminação religiosa, de discriminação étnica. Isso está acontecendo nesse momento, onde aparecem expressões de preconceito antinordestino na internet por moradoras e moradores de São Paulo. Alguns escreveram algo como “você já matou o seu nordestino hoje?”. Depois de mais uma vitória de Lula o “anti nordestinismo” parece ter se generalizado em São Paulo. Em que meio de comunicação você pode chegar e dizer “você já matou seu nordestino hoje?”, só na internet você pode fazer isto.

IHU On-Line - Esses pequenos grupos que encontraram na internet uma forma de disseminar esta posição podem se expandir?

Antônio Flávio Pierucci – Podem, pois não sabemos ainda como controlar a internet. Nem a polícia federal, nem as polícias mais treinadas sabem como controlar os crimes digitais. É muito complicado. No entanto, o resultado das eleições também serviu como um teste quantitativo para ver se esses movimentos ultraconservadores teriam poder de fogo suficiente para derrubar a candidatura petista. E não conseguiram. As coisas continuaram normais.

Termina-se esta eleição com uma enorme interrogação, terminamos o primeiro turno acreditando que a religião tivesse uma grande influência, iniciamos o segundo turno acreditando que a influência iria crescer, mas a partir da metade do segundo turno os próprios políticos e seus quartéis generais de campanha entenderam que religião demais em uma campanha eleitoral atrapalha. Quando a religião entra na política ela entra com critérios religiosos que atrapalham a lógica de negociação da política. Isto também aconteceu na campanha do Barack Obama.

O político precisa ter cabeça fria, você não pode ficar apaixonadamente defendendo uma verdade e radicalizando esta verdade. É como se você entrasse na campanha querendo ganhar a simpatia das pessoas religiosas, mas você mesmo não é tão religioso assim quanto aquelas pessoas que eventualmente podem se sensibilizar com o seu gesto cristão. E foi isso que aconteceu com a Dilma que teve que aparecer em igrejas. Já o Serra apareceu beijando um terço, mostrando que ele era uma pessoa ultrarreligiosa. E todo mundo sabe que a Dilma não é tão religiosa assim nem tão católica, e que o Serra, desde jovem, não é religioso nem católico. Isso leva a uma distorção da verdade.

IHU On-Line – Durante as eleições, o senhor frequentou diferentes cultos religiosos. O senhor pode nos contar o que viu nesses espaços?

Antônio Flávio Pierucci – Uma coisa que chamou a atenção foi a ideia de que eles realmente “batiam na tecla” do “Dilma não”. Eu ouvi algumas reuniões, noturnas, sobretudo, em algumas igrejas onde, depois de falarem bastante contra a Dilma durante a pregação, ao final chegavam e diziam o seguinte: “Todos de pé! Em qual candidato vocês não vão votar?”, aí o pessoal erguia o braço direito com o punho fechado e e respondiam: “Dilma, Dilma”. Isso deu uma impressão de que a Dilma iria ser derrotada, era como se você estivesse diante de pequenos exércitos em ordem de batalha, com as pessoas gritando dentro de uma igreja. Aquilo me deu uma impressão de que, de fato, seria um arraso. Quando veio a manifestação de Bento XVI aos bispos brasileiros dizendo que era legítimo eles entrarem na eleição para condenar os que defendem a liberalização do aborto, eu falei: “Nossa, pronto, o Serra já é o presidente do Brasil”.

No entanto, nem aquela mobilização evangélica que parecia tão calorosa nas igrejas que eu frequentei, nem essa mobilização direta do Papa acionando as cúpulas das igrejas no Brasil, deram um efeito tão consistente que fizesse com que as preferências eleitorais pela Dilma diminuíssem ao ponto de ela perder as eleições.

IHU On-Line – Olhando o mapa de quem votou na Dilma e no Serra, vemos que o Norte e Nordeste e também Minas Gerais, votaram na Dilma, e os estados do Sul votaram no Serra. Isso tem a ver com o conservadorismo?

Antônio Flávio Pierucci – Creio que não. Esse mapa mostra que o fator religioso não é determinante, porque o Nordeste é muito religioso, muito católico. O Censo de 2000 apontou que os estados mais católicos do Brasil são nordestinos. Este mapa mostra que o fator econômico é ainda o grande fator que influencia na decisão do voto, as pessoas dos estados mais ricos não aprovam tão entusiasticamente as políticas do Lula e as pessoas dos estados mais pobres ainda confiam em Lula para tirá-los de uma situação secular de atraso e subdesenvolvimento. Isso para mim é a demonstração de que o que conta em uma eleição para o eleitor são interesses materiais, de bem estar material. Não são ideias, não são valores, não são dogmas religiosos; o que conta é o progresso material, melhoria das condições de vida e assim por diante.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=38228

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