Estado, Sociedade e Mercado
João Sicsú*
As eleições presidenciais de 1989 marcaram o começo da mais intensa campanha pela destruição do Estado brasileiro e de qualquer projeto de desenvolvimento. Fernando Collor foi o abre-alas desse movimento. Fernando Henrique Cardoso colocou todas as energias dos seus governos (de 1995 a 2002) na mesma empreitada. Somente em 2002, com a eleição do presidente Lula, vieram os primeiros sinais de interrupção desse processo. Sinais mais claros de que o Estado entraria em rota de reconstrução apareceram nas eleições de 2006. Hoje, o Estado está em reconstituição.
A fórmula aplicada durante os governos Collor e FHC foi sempre a mesma. Primeiro, com intensa propaganda midiática, desmoralizava-se a entidade (empresa estatal ou instituição pública) que deveria ser vendida, extinta ou atrofiada. Instrumentos invisíveis para o cidadão comum eram utilizados para fazer a instituição definhar, antes de ser levada a leilão. Também o mais valioso ativo, aquele que faz o Estado cumprir suas funções, o servidor público, foi desmotivado e desmoralizado - apelidado de "marajá", que significava no imaginário popular quem recebia, mas não trabalhava.
Empresas estatais foram praticamente doadas; o BNDES foi transformando em banco de investimento (com características de banco privado); a Petrobras quase virou PetroBRAX; o ensino público, gratuito e de qualidade, foi atacado por dentro e por fora. Por dentro, foi atacado através do corte de recursos para investimentos e com a política de defasagem real de salários de professores e funcionários. Por fora, foi atacado com a propaganda de que nas universidades públicas somente estudavam os filhos dos ricos, enquanto os pobres eram ignorados. O sistema público de previdência era desmoralizado com a propaganda diária sobre as "filas do INSS" e, por dentro, era enfraquecido com a redução real do valor dos benefícios pagos.
Hoje não há leilão de empresas estatais. No período 2003-2008, os desembolsos anuais do BNDES cresceram, em termos reais, mais que 60% em relação a 1996-2002. A Previdência Social pagou, em dezembro de 2002, 21 milhões de benefícios. Em dezembro de 2008, pagou mais de 26 milhões. Hoje, o valor médio dos benefícios pagos é quase 20% maior, em termos reais, do que era em 2002. No período 2003-2007, foram criadas 12 universidades públicas federais. Em média, no período 1995-2002, a Petrobras investia por ano 5,6 bilhões de dólares. Em 2003-2008, a média foi de 16,2 bilhões.
Um projeto de desenvolvimento não pode existir sem a liderança do Estado e o envolvimento da sociedade e da iniciativa privada. Portanto, destruir o Estado é o melhor caminho para se destruir o sonho de desenvolvimento de uma sociedade. Mas para que serve o Estado? Para aqueles que acreditam que o desenvolvimento vem dos países desenvolvidos para os países atrasados através de um transbordamento de oportunidades de negócios, o Estado tem um papel muito discreto e um projeto de desenvolvimento não faz sentido. Para aqueles que observam a história verdadeira das nações e, portanto, percebem que o desenvolvimento é um projeto nacional, o Estado é a única entidade capaz de liderar a implantação desse projeto.
Isso porque o Estado é capaz de promover a equalização de oportunidades educacionais e de acesso à saúde. O Estado é capaz de orientar a produção e o investimento privados, que devem crescer de forma permanente, em condições de valorização do ambiente. O Estado é capaz de oferecer segurança de vida a todos, através de um sistema de previdência e de assistência social. O Estado é capaz de promover uma política de moradia digna, direito do cidadão. O Estado é capaz de arrecadar impostos de forma progressiva e gastá-los da mesma maneira, estabelecendo uma distribuição da renda menos desigual. O Estado é capaz de programar políticas anticíclicas, para manter o emprego como um direito. O Estado é capaz de desenvolver e possuir um sistema de defesa nacional tecnologicamente avançado.
Que papel cabe à iniciativa privada, ou ao mercado? O mercado é capaz de produzir alimentos em quantidade suficiente com qualidade cada vez melhor. A iniciativa privada é capaz de produzir bens de consumo para atender às mais diferentes demandas da sociedade. O mercado é capaz de realizar investimentos vultosos e com alta densidade tecnológica. A iniciativa privada é capaz de distribuir bens e serviços, capilarizando o comércio. A iniciativa privada é capaz de participar de projetos grandiosos de construção de moradias, infraestrutura e outros. O mercado é capaz de gerar milhões de empregos e formalizar relações de trabalho, gerando direitos e garantias sociais. A iniciativa privada é capaz de construir bancos e instituições aptos a ofertar crédito e outros serviços. A iniciativa privada é capaz de construir navios, aviões e plataformas de extração de petróleo.
Estado, sociedade e mercado formam o tripé institucional de um projeto de desenvolvimento. Basta que um pé seja enfraquecido para que o projeto venha ao chão. As três partes devem atuar livremente, de forma a produzir sinergias desenvolvimentistas. Por fim, Estado, sociedade e mercado não são concorrentes entre si, mas interagem e constituem os laços fundamentais de um projeto nacional de desenvolvimento.
João Sicsú é diretor de estudos e políticas macroeconômicas do Ipea e professor do Instituto de Economia da UFRJ
Artigo publicado originalmente no Jornal Valor Econômico, em 09/10/09
domingo, 11 de outubro de 2009
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