Valor Econômico - 15/10/2009
Sem outra possibilidade em 2010 a não ser ir embora para casa, mas com um enorme ativo político, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem exercido de forma plena o papel de articulador principal da sua sucessão. As definições que têm passado pelo Palácio do Planalto dificilmente encontram a oposição do PT e são em torno delas que se têm organizado o quadro eleitoral.
Em alguns Estados, os diretórios petistas se anteciparam e impuseram suas escolhas nas articulações nacionais. É o caso do Rio Grande do Sul, onde o ministro Tarso Genro, candidato a governador, conseguiu rapidamente um alto índice de intenções de votos nas pesquisas e se viabilizou como o melhor palanque no Estado para a candidatura da ministra Dilma Rousseff à Presidência. No Mato Grosso do Sul, Zeca do PT pode se impor como candidato a despeito da aliança que está sendo selada por Lula, em nome do PT, com o PMDB. O Rio Grande do Sul, no entanto, é um Estado onde as chances de uma aliança do PT e do PMDB se aproximavam naturalmente de zero, e no Mato Grosso do Sul as divergências não chegam a comprometer os interesses nacionais das legendas.
É em São Paulo, contudo, que a ação quase pessoal de Lula nas articulações políticas em favor da candidatura da ministra Dilma Rousseff deixou sua maior marca. Quando convenceu o deputado Ciro Gomes (PSB-CE) a transferir o seu título de eleitor para o Estado, o presidente conseguiu bloquear as iniciativas do PT paulista para lançamento de uma candidatura ao governo e as conversas com os aliados de esquerda para fechar a chapa ao Senado.
O PT paulista tem um histórico de poder sobre o partido nacional que está na origem da legenda. Do Estado emergiram as lideranças sindicais mais expressivas - Lula inclusive e principalmente - e os grupos originários da esquerda armada, reorganizados no período pós-anistia em torno principalmente dos jornais alternativos sediados no Estado. Segundo o jornalista Bernardo Kucinski em "Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa" (Editora da Universidade de São Paulo, 2003), houve uma organização de contornos partidários em torno principalmente dos alternativos Opinião e Movimento nos anos que precederam o início da redemocratização, e desses jornais e de seus sucedâneos originaram-se parte dos grupos que aderiram ao PT sem perder a identidade. Das chamadas "tendências" petistas, poucas se organizaram fora do Estado. As incansáveis articulações destinadas a tecer um projeto orgânico de partido obrigatoriamente passavam por São Paulo.
O declínio do poder paulista sobre o PT nacional faz parte de um processo histórico que paradoxalmente passa pela vitória de um projeto nacional - a vitória do seu candidato à Presidência em 2002 -, articulado entre esses grupos, e pelo desmonte quase simultâneo dessas facções por uma intrincada aliança interna que deu forma a uma tendência majoritária, incorporando grupos em torno de um projeto de poder pelo voto e isolando outros que se mantiveram mais à esquerda.
A partir de São Paulo, irradiava-se uma aliança de conveniência com um líder carismático - Lula, o presidente petista eleito em 2002 -, que oferecia a ele o conforto de um partido organizado nacionalmente e altamente disciplinado, mas ao mesmo tempo protegia a si próprio com uma militância orgânica e instrumentos de decisão interna que reduziam o risco da predominância da vontade de um líder sobre as decisões coletivas. A expansão do partido nacionalmente, ao longo de eleições construídas em torno da candidatura de Lula, relativizaram a maioria paulista. Em 2005, o envolvimento das lideranças nacionais, a maioria delas paulista, no chamado escândalo do mensalão, acentuou o processo de declínio.
O resultado das eleições de 2006, que reelegeram Lula, já acusavam um grande desequilíbrio entre o líder e o partido. Os mecanismos de proteção das decisões de maioria, que tinham lógica paulista, foram desarmados pela retirada, da cena partidária, de lideranças que eram artífices da aliança entre líder e partido e os promotores do campo majoritário que conteve internamente o conflito entre as antigas facções - o ex-deputado José Dirceu foi o maior deles; e pela ampliação da votação nos outros Estados da federação. O PT e Lula perderam espaço em São Paulo - o partido caiu de 18 para 14 deputados, embora tenha conseguido reeleger o senador Eduardo Suplicy (SP), talvez o único com uma faixa própria de eleitorado no PT estadual. O PT nacional sofreu perda na representação na Câmara - foram 91 eleitos em 2002 e 82 em 2006 -, mas viu o peso de sua bancada no Nordeste aumentar, na esteira da avassaladora votação que Lula teve na região.
Em 2006, portanto, o PT prosperou nos Estados onde Lula atingiu sua mais alta popularidade, e isso ocorreu nas regiões mais pobres, onde os programas de transferência de renda do governo federal, como Bolsa Família, atingiram maior porcentagem da população. Embora o PT tenha sobrevivido a 2005 e 2006 como o partido ainda líder das preferências do eleitor, Lula foi o grande eleitor das eleições de 2006 e projeta-se como o mais influente cabo eleitoral de 2010.
A hipertrofia de Lula no partido resulta num casamento de conveniência entre líder e estrutura partidária. O PT, hoje, precisa do líder carismático para viabilizar a continuidade de um projeto de poder com uma candidata não carismática, Dilma Rousseff. Lula é o criador político da candidatura e a direção nacional joga suas fichas no poder de transferência eleitoral do presidente, já que não dispõe de outro líder para transitar no cenário eleitoral pós-Lula, e que nas eleições mais recentes, as de 2006, só conseguiu expandir sua influência nas regiões em que o eleitorado se identificava com Lula. Se Dilma for eleita, contudo, inicia-se uma outra fase no partido - não será uma situação de equilíbrio entre o líder e o partido, nem de prevalência do líder sobre o partido, mas uma fase em que a presidente, pelo menos no início do mandato e até conseguir vôo próprio, é menor que o PT e dependerá fundamentalmente dele.
Se isso ocorrer, será uma situação inédita na história política do país, em que um partido relativamente orgânico sustenta uma presidente que não tem uma história eleitoral. Será uma herdeira dos votos de um líder carismático, mas com seus poderes divididos com um partido mais forte que ela.
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
Comentário do Blog
A despeito de acordos ou desacordos com ela, esta é uma boa análise, de quem se ocupa de além de escrever muito bem, pesquisar sobre o que escreve e analisar com o saudável distanciamento jornalístico, sem destilar conceitos e preconceitos, conferindo ao leitor o direito de concluir livremente. Coisa rara atualmente entre os colunistas.
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