quinta-feira, 23 de julho de 2009

O MAIOR DE TODOS, CONTO DE MARCELO BARBOSA

O Samba

Por Marcelo Barbosa

Comecei a ouvir samba ao mesmo tempo em que ouvia a música em geral, quando ainda estava saindo dos cueiros, ali pela metade da década de 1960. Minha família morava, então, num pequeno apartamento de quarto e sala em Copacabana. No nosso apertado lar, o silêncio parecia um luxo a que não podíamos nos dar. Som de buzinas, ronco de motores de automóveis, atrito de freios gastos dos lotações penetravam janela adentro nossa intimidade. Diariamente e sem clemência. Como reação ao barulho compulsório, inventávamos o nosso barulho doméstico: não existia folga para o rádio, televisão e nem para a vitrola Garrard pé-de-pálito-alta fidelidade.

Filho único, sem ter com quem brincar, a música me fazia companhia o dia inteiro. Durante as manhãs, enquanto cavalgava as pradarias da minha área de serviço- Zorro e Tonto na mesma pessoa- a Abertura Guilherme Tell servia de trilha sonora. Ás tardes, as aventuras da Tartaruga Touché aconteciam sob o fundo musical do Calhambeque de Roberto Carlos, o cantor preferido da minha mãe. Contudo, o melhor estava por vir. A música de ninar lá de casa era para criança alguma botar defeito. Após o jantar, como se fosse um ritual, meu pai fazia girar no prato do toca-disco a sua formidável coleção de LPs de 33 polegadas, aqueles bolachões pretos com um buraco no meio. Tinha de tudo: alguns clássicos, sobretudo românticos como Chopin e Tchaikovski, mas o forte mesmo era o suplemento de música popular brasileira, muita Elis Regina, Tom Jobim, Marcos Valle, Caymmi, João Donato, Sérgio Ricardo, Luiz Bonfá et caterva. Para não dizer que o velho fosse xenófobo, também me serviam de acalanto as vozes de Ives Montand, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald ou os instrumentais de Stan Getz e até o trombone brega de Ray Conniff. De samba, propriamente, havia pouco. Esta música se infiltrava na programação do meu pai através de Nara Leão que gostava de gravar as coisas de Zé Ketti ou por intermédio de Noel Rosa, “um gênio”, segundo o velho.

No carnaval, também não conseguia escutar muito samba porque as marchinhas ainda mandavam nos festejos de Momo. Pelo menos foi isto que os meus primos me contaram do carnaval de sessenta e cinco cujas matinês infantis me recusei a ir em represália ao fato da minha mãe ter me prometido uma fantasia de tirolês e na hora agá ter aparecido com um sarongue de sainha plissada que na ocasião me pareceu coisa de viado. Pior para mim. Meu primo apareceu na TV Tupi cantando “Máscara Negra” – de sarongue e durante um mês só se falou nisso nos almoços de domingo na casa do meu avô. Naquele ano, meu consolo foi assistir, equilibrado sobre os ombros do meu velho, aos desfiles dos blocos de empolgação na Av. Rio Branco como o Cacique de Ramos e o Bafo da Onça- um nunca acabar de gente que levava um tempão para passar. Ai sim tinha samba. Minha desconfiança hoje em dia é a de que a maioria daqueles magníficos ritmistas dos blocos era recrutada nas grandes escolas, cujos sambas-enredo ainda não faziam sucesso no rádio, sendo conhecidos apenas por uma minoria de pessoas na zona sul como o meu tio Roberto, o único comunista numa família coalhada de lacerdistas como a minha. Foi deste irmão de meu pai que herdei o amor pelo GRES Portela, afeição que só tem crescido no tempo.

Um dia, meu tio me levou até a Cidade. Foi então que conheci o centro das ruas largas e prédios envidraçados com a emoção de quem vê o mar pela primeira vez. A vida em Copacabana – já bem grandinha na ocasião – ainda parecia a de uma província em comparação com a agitação, as luzes, o movimento de gente a passar pelas esquinas de Rio Branco com Almirante Barroso. Guardei desta tarde uma alegria que resiste ao tempo. Ainda hoje, quando caminho por aquela parte da cidade essa sensação se renova. A evidente decadência da região não me aflige. Sei que por baixo da pátina de sujeira, descaso e até crime, pulsa o melhor de uma cidade intocada sob camadas de memória. Quando todos souberem disso a situação será outra.

Enquanto o irmão do meu pai resolvia negócios referentes à sua aposentadoria (forçada) como marítimo; me deixou em companhia de tom e Jerry no festival de desenhos impreterivelmente em cartaz no Cine Hora, do Edifício Avenida Central. Na saída da sessão ele me apanhou e fomos até a Colombo tomar um sorvete de pistache junto com seus amigos que falavam de política o tempo todo. Depois de se despedir de seus camaradas, o passeio com meu tio continuou. Muitas vezes, tive a impressão de estarmos andando pelo centro simplesmente pelo prazer de flanar, de ver gente, de olhar as vitrines das lojas. Nessa caminhada sem destinação prévia, tomamos a direção da Travessa do Ouvidor que era - e ainda é -uma das vias das mais estreitas, quase sem movimento de veículos, mas ainda sem o calçamento de pedras portuguesas que exibe atualmente.

A tarde chegava ao seu término. Logo a noite cairia, culminação ideal para um dia que fora quente e agradável como costumam a ser os dias de outono no Rio. As luzes artificiais dos letreiros e dos postes destacavam os detalhes dos rostos na multidão, punham em relevo a elegância formal dos homens de terno e gravata e graça equilibrista das mulheres de salto alto. Os sinos do Mosteiro de São Bento concorriam com o carrilhão do relógio da Mesbla para anunciar os horário das seis horas enquanto as lojas de eletrodomésticos aumentavam o volume dos rádios para que todos escutassem a Ave-Maria.

Por alguns instantes, meu tio largou a minha mão. Olhei em volta sem conseguir localizá-lo. Tudo que vi foi um monte de gente que não conhecia, a quem não podia pedir qualquer favor. Fiquei parado em meio ao movimento. Experimentei, pela primeira vez, uma sensação de desamparo que me acompanharia pela vida toda: a de estar sozinho em meio a muitas pessoas. Como costuma a acontecer nestas ocasiões minha garganta secou e a minha vista tornou-se enevoada. Era como se aquilo tudo em volta não fosse real. Ou real demais.

Finalmente, meu tio apareceu. Sem ligar para o meu pânico, foi logo falando assim como quem conta uma novidade:

“Olha só quem está ali.”

O irmão do meu pai apontava para um negro comprido, de terno escuro, camisa branca e gravata preta. O detalhe do chapéu panamá cor de areia compunha muito bem a apresentação do homem que já devia, pelo jeito, contar mais de cinqüenta anos. Não era tão alto, mas parecia se destacar entre os demais que numa roda de conversa em frente a um bar pareciam tratá-lo com a reverência tributada aos mais velhos. Nas mãos trazia um estojo delgado e retangular destinado a abrigar um instrumento, quem sabe uma flauta. O rosto exibia marcas de varíola chamadas de bexigas por aqueles que alcançaram virado do século XIX. Estando longe de ser uma pessoa bonita, era, porém, uma daquelas criaturas a quem se passa a gostar sem ao mesmo conhecer por contar com aquilo que se tornou uma palavra tão desgastada pelo uso, o carisma.

“É Pixinguinha-revelou o tio.

E como se eu ainda tivesse uma expressão de dúvida no rosto, ele esclareceu:

“É maior de todos.”

Diria eu, mais que isso: a própria definição do samba.

Marcelo Barbosa é doutorando de Literatura da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ) e editor do Algo a Dizer

contato@algoadizer.com.br

Esse artigo e outros estão na edição de julho do jornal Algo a Dizer. Boa leitura.

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