Realpolitik do Senhor
Tenho mais o que fazer, ando ocupado demais para manter o blog em dia,  mas dentro da temática que elegi para discutir aqui, não dá para ficar  calado diante da péssima notícia do recuo do governo diante da pressão da bancada evangélica  no caso da cartilha anti-homofobia (chamada de Kit Gay pela bancada da  falta de neurônios). Muita gente vem defendendo o governo dizendo que é  preciso ter realismo político e o governo precisava rifar essa discussão  para tentar reverter o jogo no caso do Código Florestal e evitar a  convocação do Palocci. Não defendo nenhum purismo político, mas todo  cálculo de meios e fins só faz sentido se você ainda tiver fins. Há uma  tênue linha entre ser uma raposa estrategista e virar um PMDB…
Diante desse fato é interessante notar que na arena da pura estratégia política a bancada religiosa mandou muito melhor do que o governo. É obviamente hipócrita e incoerente que os auto-declarados defensores da moralidade só tenham conseguido essa vitória sobre o governo mediante uma chantagem descarada, a ameaça de convocação de Palocci para depor sobre o seu enriquecimento súbito. Entre diversas opções analisadas pela bancada fundamentalista, segundo o site do inacreditável Marco Feliciano, havia pelo menos uma que representava a única forma razoável e legítima de atuação dessa bancada: a convocação do ministro Haddad para explicações, da mesma forma que a ministra Ana de Hollanda fora convocada para falar sobre as alterações na Lei de Direitos Autorais. Mas, ao invés disso, resolveram usar um assunto sem qualquer relação com o caso e na verdade barganharam “a defesa da família” ofertando em troca a não investigação de um político suspeito. Será que dar pitaco no assunto privado de como as pessoas usam seus órgãos sexuais é moralmente mais relevante do que investigar um potencial caso de corrupção? Será que os eleitores religiosos de boa fé de Marco Feliciano e Garotinho se sentem confortáveis com esse farisaísmo? Ou isso não mostra que todo discurso moralista não passa de uma ótima forma de desviar a atenção da manada de fiéis para longe do que realmente importa em política?
Muita coisa podia ter sido discutida sobre os vídeos. A bancada do  eletroencefalograma linear dizia que o vídeo fazia apologia da  homossexualidade, o que, já argumentaram por aí nas internets, ou é algo  completamente sem sentido ou algo sem relevância, porque não é um vídeo  que vai fazer alguém mudar de orientação sexual. Como disseram, os  homossexuais de hoje já são bombardeados por material midiático  heterossexual e nem por isso deixaram de ter sua orientação. Os videos do kit anti-homofobia  podem até ter alguns problemas. Questionar a qualidade do material tem  sido uma estratégia de defesa tosca de alguns militantes. Dizem que  Dilma vetou pessoalmente o Kit por não ter gostado dos filmes, o que  seria a pior das defesas, pois ela estaria assim desautorizando o MEC,  passando um atestado de incompetência de seus funcionários e mostrando  estar incapacitada de delegar poderes.  Mas não sei. Não vi todos, achei um meio chatinho, mas o outro era legal. Particularmente, eu até acho que precisava era de um tratamento de choque mais forte. Como diria um amigo meu, um país que tem um Bolsonaro devia passar Priscila a Rainha do Deserto todos os dias na escola. E também acho que não precisa fazer nenhum filme para Kit Anti-Homofobia quando já se tem algumas pérolas como Meninos Não Choram e Minha Vida em Cor-de-Rosa.  Mas o que aconteceu é que todo o debate interessante que podia  acontecer sobre a melhor maneira de chegar ao objetivo (que devia ser  incontroverso!) de combate ao bullying e de defesa dos direitos humanos  foi eliminado pela histeria religiosa e pelo uso da tática da chantagem.  O que era para ser uma discussão técnica do MEC e que, vá lá, podia até  passar pela Comissão de Educação da Câmara, voltou à estaca zero. É  por isso que a bancada religiosa não tem legitimidade para entrar nessa  discussão: não apresentou um caminho melhor, não concordou nos  objetivos, não reconheceu a existência do problema e só fez vetar a  solução que tinha sido mais discutida. A posição religiosa radical não  tem o direito de se apresentar como mais uma voz no debate porque a sua  posição é a da eliminação do debate, as suas soluções são não soluções,  como já ficou claro no caso da AIDS.
Para piorar, o governo ainda dá um passo para trás além do  supostamente necessário quando o ministro Gilberto Carvalho declarou à reportagem do Globo  que “qualquer outro material, daqui para frente, editado pelo governo  sobre a questão de costumes passará pelo crivo amplo da sociedade e das  bancadas interessadas”. Não só é terrível, como disse a Cynthia Semíramis,  ver o assunto ser tratado como uma mera questão de “costumes” e não de  direitos humanos, mas também ver o governo renunciar ao seu papel de  transformador da sociedade para se transformar em um mero repetidor dos  preconceitos já existentes. Uma lição da discussão do STF sobre a união  estável de casal homoafetivo foi que direitos constitucionais e direitos  humanos têm em seu caráter inegocíavel, uma função contra-majoritária. O  papel das garantias constitucionais elementares é frear o poder  potencialmente opressor das maiorias. A tática de Marina Silva nas  eleições para disfarçar suas posições religiosas sobre diversos temas  era dizer que eles deveriam ser tratados em plebiscitos, sabendo que,  como no caso das armas, a maioria é conservadora e seria praticamente  impossível qualquer mudança da legislação em pontos como a união  homoafetiva ou a flexibilização da legislação criminal no casos das  drogas e do aborto. Houve alguns avanços, como na decisão do STF sobre união homoafetiva,  mas o meu Iluminismo não é hegeliano: não confio que a Razão irá  triunfar sozinha sem uma boa briga. Talvez esses avanços precisem  esperar por uma transformação na base da sociedade, uma mudança na  consciência das pessoas, mas como esperar que isso aconteça se nós, os  defensores da Razão, estamos concedendo aos adversários justamente o  poder sobre as escolas?
Fonte: http://summaproinfidelibus.wordpress.com/2011/05/25/realpolitik-do-senhor/

 
 

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