segunda-feira, 15 de março de 2010

A DIPLOMACIA BRASILEIRA, BLOG DO NASSIF

Manual de como analisar a diplomacia

Aqui no Blog tem havido discussões acerbas sobre a estratégia diplomática brasileira. Comentaristas antenados com a objetividade rude da diplomacia americana têm trazido críticas importantes – para serem analisadas e discutidas – sobre os caminhos da diplomacia brasileira. Na outra ponta, analistas defendendo a estratégia do Itamarati. No pano de fundo, o novo papel do Brasil no mundo, a disputa com os Estados Unidos na influência da América Latina, o novo protagonismo nas grandes discussões comerciais e os limites da realpolitik.

Enfim, tema dos mais relevantes, que exige enorme poder de análise, conhecimento histórico sobre o papel da diplomacia, os reflexos sobre a posição do Brasil no mundo nas próximas décadas, tendo em vista o novo protagonismo do país.

Mas na mídia, discutir o tema obedece a um manual simplificador. Há como que templates que são preenchidos por conteúdo capturado aqui e ali, sem a preocupação de alinhavar um pensamento lógico. É uma soma de chavões e adjetivos, de pequenos truques retóricos para passar ao leitor a ilusão de que o autor domina o tema analisado.

É o caso da análise que Otávio Frias Filho faz da diplomacia brasileira em seu jornal, peça preciosa para analisar o manual “como discutir na mídia sem dominar o assunto” (minhas observações sublinhadas).

Aliás, a prova de que não lê sequer seu próprio jornal está na própria página com seu artigo. Na dobra abaixo, a matéria: “Prestígio universal permite a Brasil ser mediador, diz premiê palestino”, entrevista com o premiê palestino.

Da Folha

Uma política ingênua e errática

Definir algo como ingênuo confere ao polemista uma suposta superioridade intelectual, por tratar toda a formulação a ser combatida como algo intuitivo, primário em relação ao nível profundo de pensamento do crítico.

Na nossa diplomacia, cheia de distorções seletivas, a questão dos direitos humanos deixa de ter qualquer valor no trato com inimigos de Washington, os quais adulamos

OTAVIO FRIAS FILHO

DIRETOR DE REDAÇÃO

Durante muito tempo, a política externa brasileira foi negligenciada no debate público. Como ocorre em toda nação continental, a agenda interna sempre esmagou a externa, efeito acentuado, em nosso caso, pelo discreto relevo internacional do país. Aos poucos, esse quadro começa a mudar.

Talvez seja nossa inexperiência no palco do mundo, combinada à afoiteza do governo Lula em projetar a todo custo o peso geopolítico que o país já alcançou, o que nos leva a cometer equívocos em cascata e enveredar por um caminho temerário.

O paradoxo do Otavinho: “projetar a todo custo o peso geopolítico que o país já alcançou” pressupõe que esse peso seria alcançado inercialmente, sem que houvesse a necessidade de projetá-lo a todo custo. Ou seja, o país alcançou esse peso por obra da natureza ou pela mão divina, não pela ação diplomática. Típico de quem conquistou tudo sem a necessidade de batalhar por nada.

Veja-se, por exemplo, o caso do Irã. Ao que tudo indica, a elite dirigente daquele país (incluída a facção oposicionista) acredita que possuir armas nucleares seja um imperativo de segurança nacional. Não é absurdo que pense assim. Os americanos promovem atualmente duas guerras de invasão nos países que fazem fronteira com o Irã a oeste (Iraque) e a leste (Afeganistão). A menos de mil quilômetros de seus limites territoriais, a distância entre São Paulo e Brasília, o Irã tem cinco vizinhos inamistosos e dotados de capacidade militar nuclear: Paquistão, Índia, China, Rússia e Israel.

Se essa premissa for aceita, nada deterá o Irã (exceto, talvez, um desesperado ataque preventivo de Israel). O mais provável é que Israel e Irã convivam no futuro sob o “equilíbrio do terror nuclear”, o mesmo mecanismo que deteve Estados Unidos e União Soviética no passado e detém os arqui-inimigos Índia e Paquistão hoje. O que o Brasil tem a ganhar ao se imiscuir em problema que não é diretamente seu, numa conjuntura geograficamente remota e comercialmente pouco importante para nós?

Apesar da diplomacia brasileira estar sendo considerada, inclusive em Israel, como um dos novos agentes mediadores no mundo, apesar do crescimento constante das exportações para o Oriente Médio, das possibilidades de parcerias tecnológicas com Israel, apesar do Brasil estar sendo considerado potência emergente, OFF considera a região pouco importante para o país. Segue a lógica do irmão da estrada: não se meta em assuntos que não lhe digam respeito. Faz parte da série “os conselhos de dona Maria”.

Os Estados Unidos influem e se intrometem nos conflitos do Oriente Médio não para pavonear seu peso mundial, como parecem supor nosso simplório presidente e seu trêfego chanceler.

Fantástico! Celso Amorim foi um dos atores centrais de todos os grandes eventos diplomáticos dos últimos anos. Como tal, está exposto a críticas – algumas muito bem fundamentadas, colocadas por comentaristas aqui do Blog. Lula virou ator político global. Merecem, no mínimo, crítica de gente grande. E o OFF, do alto da sua proficiência, trata um como “simplório” e outro como “trêfego”. Na próxima, emitirá o julgamento definitivo sobre personagens analisados: “bobo”, “feio” e “sujo.

Os EUA estão atolados até o pescoço na região porque sua economia é dependente do petróleo local (não é o caso da nossa) e sua comunidade judaica exerce peso desproporcional nas eleições americanas (diferente de novo do Brasil, onde comunidades de origem judaica e árabe têm expressão equilibrada e convivem de fato).

Não existe razão de política externa para que nossa atitude perante a complexa, quase insolúvel, contenda entre israelenses e palestinos seja outra que não uma equidistância comedida, sempre favorável à não violência e à negociação direta entre as partes.

A diplomacia brasileira é recebida de braços abertos em Israel, com exceção de um chanceler desequilibrado, Liberman. É recebida de braços abertos no Irã. Se isso não for equidistância comedida, o que seria? A cobertura editorial da Folha, talvez.

Retomar esse contato direto, aliás, é hoje o ponto crucial naquele conturbado trecho do globo. Nossa “diplomacia do futebol” tem pouco a fazer ali, exceto passar ridículo.

O que significa esse “retomar o contato direto”, tratado como “ponto crucial” daquele conturbado trecho do globo? E o que tem a ver a “diplomacia” do futebol” com isso? Parece ter sido montado no “gerador de lerolero”.

Numa entrevista recente, o novo embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon, disse algo significativo, o que é inusitado entre diplomatas. Referindo-se às relações entre nossos dois países, constatou que “vamos começar a nos esbarrar por aí”. Shannon aludia ao fato de que o aumento do peso econômico e comercial do Brasil aumenta sua influência externa, irradia seus interesses e o expõe a crescentes áreas de atrito com outros países relevantes, desde logo os próprios Estados Unidos.

No começo do artigo, OFF diz que Oriente Médio está fora do raio de interesses do Brasil. Aqui, cita um diplomata para quem o aumento do peso econômico e comercial torna o país um player global. Para um player global o raio de interesse é o mundo. Nesse tipo de análise copia e cola, não se cuidou de costurar as partes coladas com o mesmo fio lógico. Se o Brasil aspira ser player global, se essa posição é admitida pelo próprio embaixador norte-americano, porque o conflito do Oriente Médio, que é tema diplomático global, não deveria ser tratado pela diplomacia brasileira? Há outras razões para tanto, mas OFF não as menciona por não saber elaborar sobre o tema.

Em outras palavras, não precisamos buscar sarnas para nos coçar, elas virão natural e infelizmente como decorrência de nossa projeção maior na geopolítica mundial. Logo teremos de enfrentar decisões realmente difíceis.

Também da série “os conselhos de dona Maria”. Uma conclusão que ninguém tinha pensado: para ser ator global basta o país ficar parado aguardando que as decisões difíceis cheguem naturalmente – e “infelizmente” (!). Qual seria o nome dessa nova diplomacia defendida por OFF? Provavelmente, “a diplomacia do protagonismo inercial“.

É provável, por exemplo, que o Brasil venha a ser um dos cinco entes soberanos a predominar no planeta antes de meados do século, junto com a China, os Estados Unidos, a Índia e a Europa. Continuaremos a ser o único a prescindir de armas nucleares como recurso dissuasivo? O ex-ministro Rubens Ricupero tem uma bela argumentação em defesa dessa originalidade, talvez até como contribuição da cultura brasileira ao futuro dos povos.

Como diria minhas caçulas: e… Aliás a contribuição da cultura brasileira ao futuro dos povos não é a mesma coisa que a diplomacia do futebol?

Mesmo no âmbito de uma perspectiva pacifista, porém, que é da nossa tradição, abdicar de arma atômica implica como contrapartida a obrigação de dotar o país de recursos militares convencionais muito mais onerosos e destrutivos do que o aparato atual. São questões graves como essa que merecem debate profundo, mais que nossa ingênua, felizmente inócua, aparição no Oriente Médio ou nossa desastrada e igualmente inócua ingerência nos assuntos internos de Honduras.

Um dos argumentos mais simplistas da cartilha de “como discutir sem argumentar” é o das falsas opções. Não pode falar isso porque é mais importante falar aquilo, sendo que “isso” e “aquilo” não são conflitantes entre si. Para o raciocínio dar certo, faz-se de conta ser impossível tratar das duas coisas ao mesmo tempo. Aliás, ao defender a autodeterminação dos países – embora não tenha jamais avalizado experiências nucleares no Irã – a diplomacia brasileira está seguindo a lógica de pensar justamente o Brasil grande e os óbices diplomáticos que serão colocados mais à frente pelas potências atuais – como ocorre em todo processo histórico de emergência de novas potências.

Toda política externa deve combinar o interesse egoísta do próprio país com um elenco de valores universais (essencialmente, respeito aos direitos humanos e à autodeterminação dos povos). Ela será tanto mais sólida e respeitável quanto mais os dois aspectos se harmonizarem sem grande contradição. O que estamos fazendo é uma política errática, cheia de distorções seletivas, de modo que a questão dos direitos humanos, por exemplo, deixa de ter qualquer valor no trato com inimigos de Washington, os quais adulamos para sermos vistos como “independentes”.

Que tal OFF analisar com a profundidade que lhe é peculiar esse paradoxo: se um país comete delitos contra direitos humanos (primeiro ponto do manuel OFF de diplomacia externa), como interferir em sua política sem desrespeitar a autodeterminação dos povos (segundo ponto do manuel OFF de diplomacia externa)?

Vamos confrontar os Estados Unidos, sim, e cada vez mais. Mas vamos fazê-lo quando for relevante para o Brasil, não para realizar as fantasias ideológicas da militância que aplaude o presidente Lula e seu chanceler Celso Amorim, o qual errou mais uma vez quando se filiou no ano passado ao PT. Chanceler não deveria ter partido. Parodiando Clemenceau (1841-1929), a diplomacia é assunto sério demais para ser relegado a diplomatas e a ideólogos partidários.

Outro ponto do manual de discussões inúteis: citar sempre um pensador, de preferência com a data de nascimento e morte para passar a impressão de que buscou dados precisos. Mesmo que a paródia turve o sentido da frase original. Clemenceau dizia que a guerra é importante demais para ser conduzida por militares, porque era apenas uma extensão da… política diplomática.

Da Folha

Prestígio universal permite a Brasil ser mediador, diz premiê palestino

Em entrevista à Folha, Fayad afirma que “Estado palestino está pronto” e que esse fato em breve vai ficar óbvio para o mundo a despeito de paz com Israel

MARCELO NINIO

ENVIADO ESPECIAL A RAMALLAH

O premiê palestino, Salam Fayad, está à frente de uma revolução silenciosa. Nos três anos desde que assumiu o cargo, Fayad, 58, tem sido o motor de uma lenta mas persistente transformação da imagem da Autoridade Nacional Palestina (ANP). De entidade corrupta e ineficiente para embrião institucional de um país. Economista internacionalmente respeitado, com passagens pelo Banco Mundial e FMI (Fundo Monetário Internacional), Fayad nunca portou uma pistola. Suas armas são a eficiência, a responsabilidade e a transparência.

Em entrevista exclusiva à Folha, Fayad, que hoje se reunirá com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Belém, explicou porque ainda crê em seu plano de estabelecer um Estado palestino até 2011.

FOLHA – Diante de tantos percalços, ainda é possível um Estado palestino em 2011?

SALAM FAYAD – Sim, é possível. Estamos construindo nossas instituições e seguindo padrões internacionais de gestão financeira que muitos países não têm. Mas para isso precisamos de um processo político capaz de terminar a ocupação. Esse processo não começou agora, mas nos anos 90. Deveria terminar em maio de 1999. Os temas já foram extensamente negociados. O que é considerado um desfecho aceitável para as negociações é mais que conhecido a esta altura. Mas a comunidade internacional precisa se esforçar muito mais para colocar fim à ocupação israelense.

FOLHA – Falta mais esforço dos Estados Unidos?

FAYAD – Não há dúvida de que para que esse processo seja bem-sucedido, os EUA terão de ter um papel dominante, por todo o longo envolvimento do país na região. Mas isso não significa que bastam os EUA. Nos últimos anos houve uma ampliação da mediação, com o envolvimento do Quarteto (EUA, União Europeia, Rússia e ONU). Foi criada uma sensação de parceria internacional, o que é um avanço. Mas essas não são as únicas potências mundiais que têm interesse em paz no Oriente Médio. O equilíbrio de poder mundial mudou e continua mudando. O Japão, por exemplo, é uma grande potência e não faz parte do Quarteto. China, Índia e Brasil tampouco. Quem discute o peso político e econômico do Brasil no mundo hoje?

FOLHA – Que tipo de papel o Brasil pode ter nesse processo?

FAYAD – O Brasil goza de prestígio universal e afeição imediata. É um atributo único, que pode ser extremamente importante numa negociação. Tenho imenso respeito pelo que o presidente Lula fez em seu país. A ampliação do processo de mediação é necessária para refletir a nova ordem mundial, e o peso do Brasil não pode ser ignorado. É claro que não falo de uma mediação conduzida somente pelo Brasil, porque aí estaríamos voltando às mesmas limitações de um processo só com os EUA. Mas numa negociação multilateral a participação do Brasil seria de grande ajuda.

FOLHA – Digamos que houvesse uma guinada dramática e o acordo de paz com Israel fosse assinado amanhã. O Estado palestino estaria pronto?

FAYAD – O Estado palestino está pronto. E esse fato vai ficar tão óbvio para o mundo que em breve será impossível negá-lo. Nossa ideia é criar uma massa crítica de mudanças positivas que tornará fácil convencer a comunidade de nações que os palestinos têm, de fato, algo que parece um Estado em funcionamento. Se a ocupação não terminar até lá, nossa convicção é que haverá tanta pressão para que o processo político produza esse resultado que ele acontecerá. Nossa independência será um dia que toda a humanidade celebrará, e a comunidade de nações estará com os palestinos.

FOLHA – Alegações de corrupção sempre marcaram a administração palestina. É um obstáculo?

FAYAD – Pela primeira vez os doadores começaram a transferir dinheiro diretamente para nós, o que indica a confiança que eles têm em nosso sistema. Não é segredo que rumores de corrupção e desvios acompanham a Autoridade Nacional Palestina. A realidade é que houve uma significativa evolução na forma de administração da ANP e na construção de instituições. O Ministério das Finanças funciona muito bem, seguindo os mais altos padrões internacionais. O fato de sermos capazes de publicar com absoluta regularidade todo dia 15 do mês um relatório financeiro sobre o mês anterior mostra não só nossa abertura, mas também a capacidade administrativa de tornar possível essa transparência. O problema é que a percepção de corrupção pode ser tão ruim como a própria corrupção. Estamos tentando mudar isso sendo agressivamente abertos.

FOLHA – O sr. acredita no premiê israelense quando ele diz apoiar o estabelecimento do Estado palestino?

FAYAD – A questão é de que país ele está falando. Se for país formado por restos, em que Israel mantém o controle, não aceitaremos. Queremos um Estado que emerja em todos os territórios ocupados por Israel em 1967. E sim, com Jerusalém Oriental como capital.

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