terça-feira, 21 de outubro de 2008

LEITURAS DA CRISE (1)

A crise do mercado de imobiliário americano destaca um dos aspectos preponderantes na lógica capitalista atual, que é a corrida atrás do lucro a qualquer custo, numa economia de mercado sem controle e regulamentação. "Para aproveitar o bom momento do mercado, as empresas do setor de crédito imobiliário passaram a atender o segmento chamado"subprime":um cliente de renda muito baixa, por vezes com histórico de inadimplência e com dificuldade de comprovar renda. Um empréstimo de qualidade mais baixa --ou seja, cujo risco de não ser pago é maior, mas oferece uma taxa de retorno mais alta, a fim de compensar esse risco.", segundo descreve uma matéria publicada na insuspeita Folha Online 13/08).

Dessa crise, foi gerada outra mais ampla de crédito que tem causado sobressaltos às principais economias do planeta e exigido inúmeras intervenções dos estados, muitas vezes via desembolso de recursos públicos, para impedir que ela se alastre de forma incontrolável. Dentro da lógica de salvar o capitalismo ( e os capitalistas) deles mesmos, como destaca em recente artigo publicado no Portal do PT (http://www.pt.org.br/), o jornalista Wladimir Pomar: "a preocupação das autoridades norte-americanas tem consistido em comprar ativos ilíquidos do sistema financeiro, privatizando os lucros e socializando as perdas", e mais adiante indaga: "até que ponto os países emergentes poderão evitar que seus pobres sofram com a desaceleração da economia mundial e, ainda por cima, tenham que pagar as esmolas que o capitalismo dos Estados Unidos e da Europa procurarão conceder aos seus próprios pobres para impedir que eles se mobilizem contra o sistema?"

Alguns arautos do "Deus"!mercado e da desregulamentação têm se apressado, através de artigos, colunas e entrevistas na grande mídia, em demonstrar que a crise não é resultado do que se convencionou chamar de "neoliberalismo", mas da traição aos seus pressupostos, a partir de uma suposta ainda excessiva presença do estado tanto na origem da crise quanto em relação aos instrumentos usados para enfrentá-la, e contam com um razoável apoio midiático e acadêmico para sustentar tal falácia, no bojo da batalha (de versões) ideológica que se trava desde o advento da crise, e que, antes dela , vinha sendo bastante favorável a lógica neoliberal.

Para ajudar a entender a crise, as suas causas e possíveis desdobramentos, vamos publicar uma sequência de dois artigos e uma entrevista, publicados na mídia, que, do ponto de vista da linha editorial deste Blog, expressam as mais apropriadas "LEITURAS DA CRISE". Iniciaremos hoje com o artigo do economista do Ipea, João Sicsú, "Keynes também manda lembranças",publicado na Folha de São Paulo, em seguida amanhã (22/10) uma entrevista concedida por Maria da Conceição Tavares ao sitio Carta Maior e finalizamos na quinta-feira (dia 23/10) com outro artigo de João Sicsu "Para além das políticas de resgate", publicado no jornal Valor Econômico. Boa leitura.


Keynes também manda lembranças

Nesta Folha, Cesar Benjamin, inspirado, intitulou seu artigo publicado em 20/9 de "Karl Marx manda lembranças". O texto fazia um diagnóstico da crise financeira. Agora, é hora de focar na porta de saída, então, o título adequado não poderia deixar de conter o nome de J.M. Keynes.Marx, um revolucionário, fez diagnósticos. Keynes, um reformista radical, diagnosticou o capitalismo e propôs políticas, regras e instituições para mantê-lo vivo, regulado e a serviço da sociedade.

É oportuno, portanto, destacar que a crise atual é resultado da falta de regulamentação financeira e da falta de políticas públicas de moradia para os cidadãos considerados "subprime". Foi a falta de Estado e não a sua ação ativa que causou a crise.Keynes tem sido lembrado. A ele tem-se recorrido, principalmente, para explicar a necessidade de intervenção nas instituições financeiras em crise.

Nas obras de Keynes, não há inclinações ideológicas favoráveis a estatizações ou privatizações. Keynes reconheceu, sim, a importância de um sistema financeiro sadio e eficiente como instituição imprescindível ao bom funcionamento do sistema produtivo. É unicamente sob essa ótica que as políticas de resgate de instituições financeiras têm ligação com as idéias de Keynes.

A crise patrimonial que atingiu grandes instituições abriu o canal de contaminação do setor real da economia, inclusive, nos países em desenvolvimento. Nestes, existem dois canais de contágio do setor real. O canal objetivo das reduções do crédito e da demanda internacional. E o canal subjetivo, expectacional, da confiança no futuro da economia. A tendência é que tal base de expectativas seja negativa na medida em que é influenciada pela volatilidade e pela desvalorização das moedas domésticas e das ações negociadas nas Bolsas locais.

O crédito será afetado porque instituições financeiras que não foram atingidas diretamente estão temerosas e decidiram retrair seus negócios. Empresários que tinham planos de investimento vão engavetá-los para esperar o cenário ficar mais nítido. Mesmo aqueles que não necessitam do sistema financeiro para investir, produzir ou consumir tenderão a assumir posições defensivas. Portanto, o risco nos países em desenvolvimento é que haja uma forte desaceleração das suas economias.

Nos países em desenvolvimento, todas as políticas de ampliação da liquidez podem manter a saúde dos sistemas financeiros, mas não serão capazes de restaurar plenamente a atividade de financiamento. Essa atividade depende de expectativas acerca do futuro. E, durante as crises, potenciais credores e devedores tendem a ser pessimistas. Portanto, para os países em desenvolvimento, uma saída para ser bem-sucedida deverá ter caráter genuinamente keynesiano. Deverá promover uma ativação dos negócios privados estimulada pelo setor público, que deverá fazer gastos, realizando obras de infra-estrutura, contratando mão-de-obra e transferindo renda àqueles que têm alta propensão a gastar (que são os mais pobres) e, portanto, não vão represar liquidez. A política fiscal de gastos objetiva, ademais, promover uma reversão do quadro negativo ou excessivamente cauteloso que sustenta a formação de expectativas.

Keynes alertou para a diferença existente entre as políticas de ampliação da liquidez e as políticas fiscais de gastos. As primeiras são dependentes de reações por vezes pessimistas, enquanto as últimas ativam diretamente os negócios privados da economia. E fazem, portanto, emergir novos argumentos para que os agentes formem expectativas otimistas acerca do futuro. Keynes junta-se, assim, a Marx para nos mandar lembranças.

JOÃO SICSÚ é diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea e professor do Instituto de Economia da UFRJ

Nenhum comentário: