quinta-feira, 23 de outubro de 2008

LEITURAS DA CRISE (3)

Para além das políticas de resgate, por João Sicsú

O sistema financeiro ofereceu aos americanos de renda mais baixa e instável o sonho da casa própria. Ao mesmo tempo, ofereceu aos de cima outro sonho, o da alta rentabilidade financeira - já que as operações tradicionais, como a concessão de crédito, estavam remunerando muito aquém dos seus sonhos financistas. O sonho dos de baixo era compatível com o sonho dos de cima. Diferentemente das empresas e outros entes, os americanos de baixo (os indivíduos do grupo subprime) supostamente poderiam pagar aos de cima juros mais altos.

O sistema pactuou os sonhos dos "subcidadãos" com os sonhos das superinstituições financeiras. As operações de financiamento imobiliário ao grupo de "subcidadãos" eram de alto risco por estarem garantidas pelo trabalho, por vezes informal e por rendas potencialmente variáveis. E chegou o dia em que as garantias evaporaram. Chegou o dia em que as prestações da casa própria não puderam mais ser pagas. Uma das formas de pactuação dos sonhos foi estabelecer contratos de financiamento imobiliário com juros altos, mas com percentuais diferenciados ao longo do tempo.
No começo do contrato, as taxas de juros eram baixas, depois eram muito altas para compensar a redução da primeira fase. Quando a maior parte dos contratos ainda estava na fase de juros mais baixos, a inadimplência era reduzida - foi o que ocorreu até o final de 2006. Posteriormente, na fase de juros mais altos, a prestação elevada não cabia no rendimento dos "subcidadãos" e os empréstimos deixaram de ser validados.

Esse é o desenho da crise de crédito que atingiu a economia americana. O sistema financeiro vendeu a dívida que carregava dos "subcidadãos" para as superinstituições, remunerando-as com juros elevados, proporcionais ao risco da operação. Quando foi percebido que a dívida dos de baixo não estava sendo validada, decidiu-se vender o papel lastreado na capacidade de pagamento dos "subcidadãos". Quase que simultaneamente, todos tomaram a mesma decisão. Por razões óbvias, os papéis passaram a valer quase nada. Quando os preços de ativos entram em deflação aguda, diz-se, então, que o mercado entrou em crise de liquidez. Esses papéis de alto risco e remuneração compunham o ativo de muitas instituições financeiras nos Estados Unidos. Os valores de passivos são mais rígidos do que de ativos. Se por um lado, a maior parte dos ativos das instituições financeiras é cotada pelo mercado, por outro, os seus passivos estão registrados em contratos. Assim, passivos e ativos se desequilibraram.

Foi isto que tornou o capital de diversas instituições insuficiente para garantir a continuidade de suas operações. A terceira crise, então, adentrou a economia: a crise patrimonial. Primeiro foi a crise de crédito, que se transformou em crise de liquidez, que, por sua vez, se transformou em crise patrimonial. Instituições financeiras que não foram atingidas tão diretamente pela crise estão temerosas e decidiram retrair seus negócios: afinal, ao negociar um ativo, o devedor potencial pode ser um "subcidadão" oculto ou uma superinstituição em crise, mas sem sintomas externos. Se isto vale para o sistema financeiro, vale também para setor real da economia. Quem tinha planos de investimento em capital produtivo vai mantê-los na gaveta. O trabalhador sujeito a risco de renda (desemprego) vai reduzir a demanda para fazer um fundo de precaução. Portanto, o risco agora é de que haja uma quarta crise: uma crise de demanda por mão-de-obra, bens de consumo e capital produtivo.

O canal mais objetivo de contaminação dessa próxima crise é a redução da oferta e da demanda por crédito, independentemente das taxas de juros cobradas ou oferecidas. O outro canal é subjetivo, é a desconfiança generalizada na capacidade de compra futura da economia, ou seja, mesmo aqueles que não necessitam do sistema financeiro para investir, produzir ou consumir tenderão a se retrair. Aviso aos liberais: esta crise é resultado da falta de regulamentação sobre as superinstituições financeiras e da falta de políticas públicas de moradia para os "subcidadãos". Foi a falta de atuação do Estado, e não a sua ação ativa, que causou a crise.

As políticas governamentais de resgate do sistema financeiro são todas necessárias. As políticas de compra de papéis que não valem o que o mercado pagaria restituem o capital de instituições que poderiam falir. As benesses orçamentárias do governo que envolvem as transações de aquisições de instituições dentro do sistema financeiro são válidas. As intervenções diretas com recapitalização e tomada do controle por parte do Estado são indispensáveis. Contudo, todas essas políticas são limitadas porque os canais objetivo e subjetivo de contaminação do setor financeiro para o setor real já estão abertos.

Uma política fiscal agressiva de gastos será necessária. Todas as políticas de salvamento de instituições financeiras podem restabelecer a saúde do sistema, mas não são capazes de restaurar a sua atividade. O saneamento do sistema é um problema objetivo, contábil. Contudo, sua atividade depende de sentimentos, conjecturas e temores tanto da parte do sistema financeiro quanto da parte do setor real. Toda a liquidez que poderá restaurar instituições financeiras e impedir que a crise atinja o sistema em sua totalidade pode ficar represada. Banqueiros e empresários não têm interesse em realizar negócios que podem não ser validados pelo consumidor final. A saída bem-sucedida deverá ser uma ativação dos negócios privados estimulada pelo setor público, que deverá realizar gastos, contratar mão-de-obra e transferir renda àqueles que têm alta propensão a gastar (que são os "subcidadãos") e, portanto, não vão represar liquidez.

Caso as políticas do governo americano sejam apenas de restauração do sistema financeiro, a economia dos Estados Unidos ficará patinando por algum tempo, que poderá ser longo. A economia japonesa já mostrou e tem mostrado que não vale a pena esperar. A diferença entre as políticas de ampliação da liquidez e as políticas fiscais de gastos, ensinada por J. M. Keynes, é que as primeiras são dependentes das reações por vezes pessimistas ou excessivamente cautelosas do setor privado, enquanto as últimas representam "remédio direto na veia", ou seja, compras diretas ao setor privado, contratações de mão-de-obra ou transferências de renda àqueles que gastam tudo aquilo que recebem e que, portanto, ativam os negócios privados da economia. (artigo publicado no jornal Valor Econômico, em 17/10/08)

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